domingo, 9 de fevereiro de 2025

 

 

 

ESTAÇÃO AMIZADE

Dez jovens lutando contra o suicídio

 

DALMO DUQUE 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Mesmo que não existisse mais nenhum lugar para onde a gente pudesse fugir, restaria ainda a possibilidade de mergulharmos em nosso mundo interno”.

 

 


 

 

  

SUMÁRIO

 

I.                VERÃO, Estação Início, quando o mistério do desparecimento de Hugo me causa intensa perturbação. 05

 

 

II.              OUTONO, Estação Medo, quando descubro que quatro colegas meus estão escondendo um segredo e que pode explicar o desaparecimento do meu amigo. 12

 

 

III.           INVERNO, Estação Dúvida, quando descubro que por trás do segredo existe um problema muito mais grave e que muitas outras pessoas estão envolvidas.  37

 

 

IV.           PRIMAVERA, Estação Recomeço, quando as coisas começam a ficar mais claras, definidas e surgem novas perspectivas para as questões que incomodam todos os envolvidos. Eu consegui, mas quem ainda está inseguro e incerto pode estacionar e aguardar, por algum tempo, até que descubra qual destino deve escolher. 54


V.     EPÍLOGO, quando consegui finalmente consigo reencontrar o meu amigo e que a minha busca chega ao fim. Será? 83

 

 

 

 

 


 

 *

 Para cada pessoa uma trajetória.

Para cada trajetória uma estação diferente.

Qual é a sua Estação?

Qual o rumo da sua viagem?

 

 

 

 

 

 

  

VERÃO-  ESTAÇÃO INÍCIO

Quando o mistério do desaparecimento de

Hugo me causa intensa perturbação.

 

 

14 DE MAIO

SÁBADO

 

Hoje o dia é de sol, muita gente na rua, indo à praia, nos mercados, no centro da cidade.

Levantei cedo, muito cedo para o meu gosto. Detesto acordar de manhã. Faço isso todos os dias para ir à escola. Gostaria de estudar à tarde ou à noite.

Sem fome nenhuma. Saí de casa sem comer nada e minha mãe perguntou o motivo da pressa. Dei uma desculpa qualquer, mas ela sabe que é mentira. Nem insistiu no café.

Saí meio sem rumo. Sabia o rumo, mas não encontrei o Hugo. Não esperava mesmo que estivesse no lugar de costume. Mesmo assim, fui direto para lá.

O Píer estava meio vazio. Na verdade, tinha bastante gente, mas não vi ninguém conhecido. Não reconheci quase ninguém. Fiquei lá por alguns minutos, que pareceram horas, e não apareceu ninguém para dar notícias do Hugo.

Nada no Face e nenhuma mensagem no what´s há mais de cinco dias. Estranho.

Não muito estranho, porque o Hugo já desapareceu outras vezes. Some por um tempo e aparece do nada. Mas dessa vez sumiu faz um tempão.

Antes alguns chegados davam pistas dele. Agora, não consigo falar nem com os chegados. Sumiu todo mundo.

Poderia ter ido na Estação, mas hoje é sábado... O Quarteto Fantástico certamente não estaria lá, conversando alto e salvando o mundo.

Fazem isso de segunda a sexta, sempre na mesma hora. Reunião de confraria. Se acham a Fraternidade das Grandes Mentes do Universo. Eles gostam do Hugo, tratam ele bem, mas nunca aceitam ele lá. Senão seria quinteto ou sexteto, se me aceitassem.

Dane-se!!!

O Hugo entregou currículo na semana passada inteira. Será que chamaram ele para algum trampo, para virar a noite? Era o sonho dele arrumar um trampo desses que viram a noite, dois, três dias seguidos.

Ou será que foi convocado para o quartel. Tinha certeza que ia ser chamado quando fez o alistamento militar. Estava morrendo de medo de ser convocado. Detestava a ideia de usar farda e obedecer, cegamente, as ordens de cabos e sargentos. Disse que, se fosse convocado, iria fugir. Desaparecer. Preferia virar morador de rua em outra cidade do que servir. Fugiu ou então está preso no quartel, depois de arrumar alguma confusão. Falava que ia cuspir na cara do sargento, se gritasse com ele.

Hugo nóia...

Voltei pra casa já estava escuro.

Passei o dia inteiro andando pela cidade. Pelos lugares mais conhecidos, claro. Nem quis imaginar que o Hugo pudesse estar escondido em algum bairro longe do centro, na casa de algum conhecido dele. Mas ele não conhecia ninguém desses lugares, não que eu saiba.

Quando a gente procura alguma coisa, geralmente não acha.

Caraca! Fui em tudo quando é buraco, encontrei só gente estranha. Ninguém pra dar uma única informação. Pensei: como deve ser difícil fazer investigação policial, ficar atrás de pistas pra achar pessoas desaparecidas ou suspeitos de crimes.

Só vi uma pessoa conhecida, mas muito de longe. Parecia a Carla, a mina que detonou vários caras lá escola. Era a Carla, sim.  Muito gata, mas cruel. Dava cada lance, mas sempre na dela. Quem se envolveu com ela se ferrou. Muito linda. E os caras se apaixonaram. Foram uns três ou quatro. Tudo Mané.

A Carla me viu e fingiu que não se ligou. Virou o rosto. Tive a impressão que ela sabia alguma coisa sobre o Hugo. Foi instinto. Fui na direção dela, mas simplesmente boicotou. Subiu numa lotação que nem era a que iria pegar, só pra vazar e não falar nada.

Meu, se essa mina aparecesse agora eu dava um esculacho nela.

Mas lembrei que ela se corta e sempre vejo ela conversando com alguém do Quarteto Fantástico. Devem conversar sobre automutilação e por isso não confiam nas pessoas que não entendem.

Não confiam em mim. Sempre que vejo eles conversando, agem de forma estranha, olhando para os lados, como se trocassem informações sigilosas.

Quando chego perto mudam de assunto e esperam até que eu me afaste. Já tentei ouvir, chegando de surpresa, mas só pego trechos das conversas, coisas assim “Estou muito mal, me sentindo péssima”.

Quando a Carla fugiu, fiquei meio desnorteado e desanimei. Me deu fome. Andei mais de uma hora pra voltar pra casa.

          Os que se cortam fazem isso para aliviar uma dor interna. Foi o que me disse um colega que conhece algumas dessas pessoas que se cortam. Ele me explicou de uma forma muito interessante o que acontece com meninos e meninas que se mutilam com lâminas cortantes.

“Uns dizem que é pelo prazer, o que não é verdade porque se cortar não é doloroso, carnal e existencialmente falando”.

“Pode ser também uma forma de marcar as derrotas íntimas ou a incapacidade de enfrentar os problemas”.

“O presidiário marca a parede da cela com riscos. Os jovens riscam o corpo, sua própria cela”.

Achei muito curiosa essa explicação. Pude entender melhor o que se passa no mundo deles.


CARLA, 17 ANOS.   

           

A Carla é uma garota estranha. Bonita, mas estranha. Ela se corta. Não sei desde quando ou se já parou. Mas tem marcas. Já me disseram. As pernas e os braços estão sempre escondidos.

Ela mora com uma tia solteirona e que ela diz ser madrinha dela. Os pais são separados e foram viver com outros parceiros, porém nenhum dos dois quiseram ou não puderam ficar com ela. Ou ela não quis morar com nenhum dos dois e veio morar com essa tia, irmã do pai.

O pai, bem mais novo que a mãe, é músico; e a mãe sempre foi uma mulher muito bonita, que deve ter sido muito mais bonita quando era jovem, como a filha é hoje. Sempre levaram uma vida livre, sem compromisso e parece que a Carla nasceu em meio a alguns incidentes.

Essa tia sempre ajudou os dois, sobretudo depois que a Carla conseguiu nascer. Mas a vida deles só foi piorando. São viciados em drogas e vivem em função disso. Brigavam muito e chegaram ao ponto de agredirem-se com facas. Viviam sendo expulsos de apartamentos alugados, por causa das brigas.

É raro ver a Carla sorrir.  Não me lembro de ter visto ela alegre e descontraída. Sempre fechada, de cabeça baixa, se escondendo por trás dos cabelos longos e negros.

Não quer seguir nenhuma carreira. Sempre carrega um livro, obras clássicas de leitura difícil. Adora Alice e ama o Chapeleiro. 

Isso pode ser um indício de que pensa em ser escritora ou poetisa e que seus problemas e suas difíceis experiências emocionais formam as condições ideais para a construção de suas futuras obras. 

É praticamente impossível escrever sem antes ter sofrido algum dando moral e emocional, dizem os entendidos. 

Gostaria de saber se ela tem realmente essa inclinação e também poder falar pra ela sobre a necessidade que tenho de escrever, como se fosse o alimento da minha alma. 

 Entrei em casa em silêncio. Ninguém na área.

Minha mãe deve ter ido na missa. Chego sempre depois desse horário pra ela não me convidar.

Até sei rezar e rezo de vez em quando, mas não fui mais na Igreja. Ela falou pra eu ir em qualquer outro lugar que falassem de Deus, mas prefiro rezar sozinho. Colocou uma Bíblia na minha gaveta.

Gosto da Bíblia. De vez em quando leio algumas histórias do Velho Testamento: José do Egito, Daniel na Cova dos Leões; e no Novo Testamento  Jesus conversando com Nicodemos e a descrição de Lucas sobre Maria Madalena e outras mulheres. No Antigo gosto especialmente do Gênese. Me falaram (o Gabriel) que Moisés escreveu esse texto numa linguagem esotérica (Cabalah) aprendida no Egito, para não ser adulterada na sua essência. Leio e não consigo perceber isso. É uma matemática textual. Papo do Gabriel, cérebro grego.

Minha mãe diz que o Gabriel é na verdade um cérebro oco, que só tem casca para encobrir os problemas. Não perde a chance de cutucar. Já falei pra ela arrumar um emprego no Face, de cutucadeira profissional. Ela diz que o Face é uma miragem do deserto humano, o demônio arrastando todo mundo para a ilusão das aparências e fantasias.

O barulho de uma flauta doce tocando Asa Branca não me sai da cabeça. Quando voltava pra casa ouvi alguém tocando isso. O Hugo abominava flauta doce e essa música era a morte pra ele. Disse que tinha sido obrigado a aprender a tocar flauta e se apresentar numa bandinha da escola, na festa junina. Tinha muita raiva disso. Preferia apanhar do que tocar flauta doce naquela bandinha ridícula, vestido de cangaceiro.


 

  

 

                                         15 DE MAIO

                                           DOMINGO

 

Tá o maior silêncio agora de manhã. À tarde vai piorar. A cidade fica morta, esquisita.

Detesto os domingos. Ou melhor, me detesto aos domingos. Fico perdido e deprimido com essa oscilação de impressões que tenho sobre a manhã, tarde e noite desse dia de descanso para quem trabalha.

Não deve ser apenas eu que sinto essas coisas sobre os domingos. Impossível ser apenas eu.

O Hugo também não gosta de domingos. Como será o domingo no lugar onde ele está?

Hoje também tem missa.

Vou dar mais uma saidinha.

Todos vivem uma fantasia aos domingos. Fantasia que começa de manhã e se torna intensa no horário longo dos almoços e que depois vai diminuído lentamente no entardecer.

Na cidade vizinha, apesar de ser muito maior, os domingos são mortos e as pessoas parecem se esconder para não demonstrar suas fantasias de alegria.

Aqui, contraditoriamente, a cidade é alegre e viva aos domingos, apesar de ser mais pobre. As pessoas lutam intimamente com mais intensidade para prolongar os domingos até tarde da noite.

Não sei se fico alegre com essa criatividade ou se fico triste pelo esforço que eles têm de fazer para esticar a alegria das manhãs.

 

                     

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

OUTONO – ESTAÇÃO MEDO

 

Quando descubro que quatro colegas meus estão escondendo um segredo e que pode explicar o desaparecimento do meu amigo.

 

 


16 DE MAIO

SEGUNDA-FEIRA

 

Passei a noite em claro.

A segunda-feira começou com uma madrugada fria e interminável.

Nada de novo na internet. Na rede tem de tudo e não tem nada. Tem até grupo de pessoas que querem se matar e incentivar o suicídio. Pessoas vazias ou então muito cheias de ideias, cheias de tudo e de si mesmas. Detestam suas famílias.

Estou sendo injusto. Na verdade, a noite estava linda, com clarão de luar. 

Toda essa situação fecha o meu olhar sobre essas coisas simples e belas da vida.

Tentei de tudo pra ter alguma informação sobre Hugo e não consegui absolutamente nada. Nessas horas parece que todos se escondem e ninguém sabe de nada.

Para não entrar em desespero imagino ser Sherlock solucionando o misterioso desaparecimento de Watson, no caso Hugo. Assim brinco e tento não lembrar que tudo isso é real e que o Hugo pode já não estar mais entre nós.

Tentei também me distrair de todas as formas na web, mas também não funcionou.

Estava tão entediado que nada me chamou a atenção.

Comecei a ver alguns filmes e desisti nos primeiros minutos.

Nessas horas o melhor a fazer é ficar na sua e aproveitar o ninho, arrumar e curtir suas coisas, seus brinquedos antigos e novos e, de preferência, ler alguma coisa, aquele clássico que você vem adiando já faz um bom tempo. Certamente o tempo vai passar, mesmo que demore uma eternidade.  

E a gente acaba dormindo e sonhando coisas interessantes e aparentemente sem explicação. Nessas poucas horas que dormi sonhei que estava num enorme prédio público, do lado de fora do prédio, mas dentro do terreno, e que achei muitos documentos numas pastas antigas. Uma delas tenhas muitas informações sobre o meu pai. Fotos em preto e branco de desfiles, passeatas, festas. Esquisito isso. 

Hoje de manhã cheguei bem cedo na Estação.

Como de costume, as mesmas pessoas aguardando o trem para irem ao trabalho. Interessante é que o Quarteto Fantástico não estava lá. Isso me deixou muito curioso e de propósito decidi atrasar minha ida à escola.

No terceiro trem ainda dá pra chegar e entrar na segunda aula. Se não chegasse antes disso tomaria mais uma advertência.

Apostei e me dei bem. Eles apareceram. Do nada. Os quatro. Estavam todos com um ar grave de preocupação com algo que não haviam conseguido solucionar.

Um deles estava com um objeto na mão e a todo instante tirava e guardava dentro de uma sacola de plástico. Parecia ser algo de valor. Desconfiei que poderia ser uma arma, mas logo descartei a ideia, já que não seria necessário estar verificando tantas vezes.

Era alguma coisa diferente.

Fiquei na minha, mas fui dando um jeito de me aproximar, pra tentar identificar a coisa, mesmo mantendo uma certa distância.

Também fiquei de costas um tempão, para fingir desinteresse e, vez em quando, olhava para trás tentando roubar alguma cena ou lance mais esclarecedor.

Foi difícil esperar, mas finalmente percebi que se tratava de uma pequena bolsa de couro. Todos olhavam atentamente o conteúdo da bolsa quando era retirada da sacola.

Minha curiosidade se tornou insuportável.

Não consegui me controlar e parti para onde eles estavam, sem pensar em qual explicação daria para minha súbita aproximação. Sabia que não seria bem recebido, mas nem me importei com uma possível rejeição e repreensão do grupo.

Fui andando rapidamente até eles e logo perceberam a minha intenção. Não deu outra: a bolsa foi colocada de volta na sacola e guardada na mochila do Gabriel.

O Gabriel é o articulador do grupo, embora não pareça, pois todos são, como ele, muito articulados. É aquele cara tipo grandão, mas muito gentil e sempre sorridente. Tipo político. Chega nos lugares, sorri e acena pra todo mundo.

Foi ele quem percebeu minha aproximação e deu um toque para os outros três: a Samantha, baixinha metida, nerd, óculos fundo de garrafa, muito parecida com aquela garotinha intelectual da turma do Scooby Doo, Welma, se não me engano; a Verônica, alta, também com óculos de grau, mas bem transado e caro; e finalmente o Tarso, boa pinta, gente boa, toca violão e vive rodeado de garotas.

Assim que cheguei perto, o Gabriel tomou a iniciativa de me cumprimentar, com todos os protocolos, perguntando como eu estava e que no final de semana não tinha me visto na Estação. Dei umas desculpas ridículas e fui logo saudando os demais.

A Samantha não abriu a boca, apenas sorriu, bem amarelo.

A Verônica foi mais gentil e fez algumas perguntas sobre mim e minha mãe, dizendo que tinha visto ela, de longe, na rua.

E o Tarso nem precisou se esforçar para dizer que apenas estavam tentando disfarçar alguma coisa muito importante.

Nenhum deles falou ou fez perguntas sobre o Hugo.

Quase perguntei descaradamente: “E aí, o que tem nessa bolsa de couro”?

Ficou só na intenção.

Quando pensei que ia perguntar, surge o maldito terceiro trem que nos levaria todos para seus rumos e eu para a segunda aula na escola. Só consegui comentar a coincidência de todos estarmos atrasados para as primeiras aulas de cada um de nós, em algum lugar.

Haveria algum motivo especial para isso?

Ninguém respondeu ao comentário, não da forma que eu esperava. Apenas riram concordando com a coincidência e provavelmente com o motivo especial, que estava dentro da mochila do Gabriel.

Dia inútil. Fui e voltei pra casa sem nenhuma novidade, a não ser essa coisa que o Quarteto Fantástico estava escondendo. Disse pra mim mesmo, balançando a cabeça: “Amanhã eu descubro”.

Já é tarde da noite.

Tô cansado e hoje acho que vou dormir mais tranquilo.

Andei bastante pela cidade, fazendo as coisas de rua, pagando contas.

Na escola o mistério continua.  Ninguém sabe o paradeiro do Hugo. Alguns pensam que eu sei onde ele está e outros sabem que não porque já andei perguntando por ele.

A mãe do Hugo esteve na escola hoje.  Mas não se sabe exatamente o motivo desse comparecimento.

Não perguntei pra ela porque tenho medo de que me envolva no caso.

Não me procurou também e isso me deixou mais intrigado.  Ela sabe que somos amigos e que, quase sempre, estamos juntos.

Para mim tudo isso está tudo muito esquisito. Às vezes fico pensando se tudo isso não passa de um grande engano ou mesmo uma neurose minha.

 




17 DE MAIO

TERÇA-FEIRA

 

Estava tão chapado de sono ontem que dormi com a luz acesa. Minha mãe nem percebeu porque senão teria apagado a luz.  Na verdade, ela acha que ainda tenho medo do escuro, pois sempre esqueço a luz acesa e ela não apaga.

Tô aqui pensando naqueles quatro elementos, os avatares e o segredo guardado na mochila. Vou me atrasar de propósito pra ver se pego eles no flagrante, na estação.

E se eles levantaram mais cedo hoje e já estão lá tramando alguma coisa?

Tenho que decidir rápido antes que minha mãe acorde. Terça é dia de feira aqui na rua e ela acorda mais cedo pra adiantar as coisas e depois ficar mais livre para pegar a hora da xepa. Os feirantes já sabem disso e aumentam os preços para depois baixarem no fim-de-feira. Ainda está escuro. Vou esperar eles lá na estação, escondido.

O percurso de casa até a estação é bem rápido. O difícil é se esconder naquele lugar bem iluminado. E também não tem onde a gente se esconder, pois é tudo aberto.  Mas vou tentar.

Chegaram juntos. 6:30 em ponto.

Curioso é que o Gabriel está com a mochila aparentemente leve e vazia. Observei todas as mochilas e vi que todas estavam vazias. Mas não dá pra saber se estavam carregando a sacola de ontem.

Estão em silêncio, apenas olhando vagamente uns nos outros à espera de uma iniciativa de alguém, para dar uma solução para aquele problema.

Fico bem de longe observando como essa situação vai se desenrolar. O rolo deve ser muito forte e complicado.

Uns estão muitos nervosos, como a Samanta e o Gabriel. Não param de balançar as pernas e mexer nos cabelos. Estão preocupados com o horário.

Tenho vontade de ir até lá me arrastando sem ser percebido, mas não há nada, absolutamente nada, nessa estação para que eu possa me esconder e ouvir a conversa.

Não teve jeito. É muito cedo e a estação ainda está vazia. Tá o maior silêncio.

O Gabriel acendeu um cigarro.

Me deu vontade de fumar. Não tenho cigarro nem grana pra comprar. Só vim com o dinheiro da passagem.

Todos sentaram em círculo, certamente para conversarem com mais calma.

Não resisto. A vontade de fumar é muito grande e vou em direção ao Gabriel para pedir um cigarro.

Todos certamente vão me fuzilar com os olhos e alguns até vão dizer que não tenho vergonha na cara.

Que se dane!

O Gabriel só fuma cigarro de menta.

Chego bem perto do círculo e, para a minha surpresa, ao lado da sacola está uma grande carteira de couro, do tipo bolsa de mão, usada por aqueles coroas, com divisões para talão de cheques, dinheiro, cartões, etc.  Parece ter muita coisa nela, pois está estufada.

Ninguém fala nada. Todos me olham e não dizem absolutamente nada. Fico mais surpreso ainda quando o Gabriel pergunta se quero um cigarro, muito antes que eu tivesse coragem de pedir. Tira o maço do bolso e joga para mim e depois manda o isqueiro. Continuo em pé sem entender o que se passa. Mas continuo na minha, sem esboçar nenhuma reação de espanto.

“Gente, precisamos decidir, está amanhecendo muito rápido e a estação vai ficar cheia”, disse Samantha.

“Daqui a pouco teremos outra surpresa desagradável”, complementa, olhando para mim com um ar de ironia.

Nesse instante o Tarso se levanta e fala que não vai mais esperar. Quer a parte dele e se quiserem poderão denunciar onde bem entenderem.

“Preciso dessa grana ainda hoje. Minha mãe está desesperada. Disse que ia pedir dinheiro pra um agiota lá da rua, um cara muito perigoso. Melhor eu me ferrar do que ela”, disse bem contrariado.

O Gabriel lembra que a grana que tem na carteira é suficiente para todos e que nem vão precisar usar os cartões.

Eu estou pasmo. Boca fechada, fumando e tragando como nunca, e em silêncio.

Não tenho nada de especial e eles continuam não se importando comigo e com a minha presença. E vão falando coisas espantosas sobre suas vidas e revelando os seus segredos mais íntimos. Alguns eu já sabia, mas não sabia que eram tão graves como contaram agora.

Por que me contam essas coisas, pra alguém que eles nem conhecem muito bem. Tenho dúvidas se confiam em mim ou se querem apenas mais um cúmplice.

Preciso me apresentar e também falar um pouco mais deles. Afinal, também são amigos do Hugo, um cara que conheci perto da estação completamente perdido, procurando uma rua que nunca existiu e me pedindo maconha, pensando que todo mundo que mora em lugares simples fuma maconha e é traficante. Queria se enturmar. Que figura.

  

TENHO 17 ANOS, QUASE 18.


Moro com a minha mãe. Ela é professora aposentada. Tenho três irmãos adolescentes por parte de pai, mas ele vive com outra mulher. Ele não é muito velho, mas já se aposentou da indústria química, onde trabalhava como operador.  Meu pai é alcoólatra e frequenta o A.A. (Alcóolicos Anônimos). Fui ver uma reunião deles quando soube que ele frequentava. Fui em outro grupo, pra não deixar ele constrangido.

Eles assumem que são doentes e que provavelmente nunca vão se curar, mas que isso não é tão importante quanto estar conscientes de que são alcóolatras. O desejo de beber é tão intenso e forte que eles foram buscar provavelmente no budismo a ideia dos 12 passos para o equilíbrio. Os Neuróticos Anônimos funcionam de maneira idêntica.

Quando fui no A.A. e ouvi o depoimento de um dos membros chorei com ele e lembrei muito do meu pai imaginando o esforço dele para se controlar e não comprometer o segundo casamento dele.

Gosto de política e de movimentos sociais.  Atuo no grêmio estudantil e no jornal da escola.

Meus professores têm diferentes opiniões sobre as minhas vocações.   Alguns acham que me daria bem como jornalista ou teria uma boa carreira na literatura ou na publicidade. Outros pensam que deveria cursar Direito, por causa das minhas posturas na defesa dos alunos e na organização de eventos comunitários.

Gostaria de ser tudo isso e de fazer todas essas coisas, porém acho que o mundo está mudando tão rapidamente que todas essas e outras profissões atuais e tradicionais vão desaparecer para dar lugar a outras funções sociais.

Leio muitos autores futuristas e intérpretes dessa nossa época. Apesar disso, creio que a minha geração é de um tempo de transição e que não terá êxito nas suas realizações.

Um dos autores que li disse que vivemos num período no qual não sabemos o que realmente está acontecendo com o mundo e por isso não sabemos quais tendências serão acertadas.

Na verdade, quero atuar na área da educação, pois considero mais prudente e seguro. Os meus professores reprovam essa ideia. Um deles me questionou: “Como vai querer segurança numa época em que não existe mais certezas e estabilidade”?

Mas vejo esses autores que leio exatamente como educadores e precursores desses novos tempos. Penso que posso e devo fazer o mesmo.

Este sou eu, em parte. De resto, sou jovem normal, como outro jovem qualquer.


O “QUARTETO FANTÁSTICO”


TARSO, 17 ANOS.

Possui dons psíquicos desde a infância. Sempre confidencia para pessoas mais íntimas suas experiências paranormais nas quais revela visões de pessoas e cenas em outras dimensões. Quando criança diziam que eram fantasias e “amigos imaginários”.

Mas as experiências não cessaram até hoje e lhe parecem muito reais. Uma das pessoas que mais vê é uma tia, irmã de sua mãe, falecida num acidente de carro quando ainda era bem jovem. Geralmente ela aparece nos seus momentos mais difíceis, sempre vestindo trajes hippies da sua época, roupas coloridas ou psicodélicas.

Sonha em ser jornalista esportivo e apresentador de TV. Gosta de todos os esportes e vibra com os grandes eventos esportivos. Adora futebol, mas não esconde sua admiração pelos esportes olímpicos e pelas estrelas que ganharam medalhas de ouro em todas as modalidades. Sabe os nomes da maioria dos recordistas históricos.

               Quando soube que o Brasil iria sediar as Olimpíadas de 2016 se inscreveu como voluntário para atuar no Rio de Janeiro no período dos jogos. Conseguiu até um endereço de parentes para facilitar sua aceitação no quadro.

Mora só ele e a mãe, que trabalhava há muitos anos como recepcionista em consultórios, mas agora não consegue mais emprego. Eles estão com o aluguel atrasado e se não acertarem o desse mês serão despejados.

Toda aquela aparência de bom rapaz, calmo e tranquilo, caiu por terra quando vi o rosto dele transtornado ao lembrar que a mãe chora convulsivamente por todas essas coisas, principalmente pelo fato de já estar velha e não ser mais tão bonita e feliz quando era mais jovem e se divertia com os amigos e namorados.

Tarso sente que seus sonhos estão se desfazendo e ultimamente anda muito triste e angustiado com a situação em que se encontram. Não podem contar com ninguém além deles mesmos.

 

SAMANTHA, 16 ANOS.


A mãe é costureira e o pai é motorista.  Quer ser engenheira. Tem muita facilidade com as matérias de exatas e uma capacidade muito boa para organizar projetos e eventos.

Seu sonho é morar nos Estados Unidos e sempre fala que vai vencer no Vale no Silício, na Califórnia. Ultimamente andava com um livretinho de conselhos sobre carreira, da Bell Pesce, uma jovem brasileira que estudou engenharia, trabalhou no Google e hoje tem sua própria startup (empresa de negócios inovadores).

Tem um irmão de 12 anos que possui uma doença rara e que precisa de acompanhamento médico e medicação cara. Os pais frequentam uma igreja evangélica e lá recebem bastante ajuda dos membros por meio de campanhas. Não gosta da Igreja. É religiosa à sua maneira. Reclama que é muito discriminada pela forma como se veste e pelo seu estilo de vida.

Samantha prefere a companhia afetiva de meninas. Isso tem causado a ela muitas dificuldades de relacionamento com os pais e com alguns parentes mais próximos.

Questiona tudo aquilo que não cabe na sua forma de pensar e agir. É muito prestativa e respeitada na escola pelas suas atitudes de ajudar as pessoas com dificuldades de estudos e de relacionamento.

É vista constantemente conversando com os colegas, ouvindo desabafos e ajudando a desatar nós íntimos. Usa uma medalha com a foto do irmão.

  

GABRIEL, 18 ANOS.


Já está na faculdade e está desempregado. Faz alguns bicos como garçom em baladas e trabalhos para colegas do curso que não tem tempo ou disposição para fazer pesquisa.

Seus pais trabalham em barracas da feira e todos moram na casa dos avós paternos. Está com as mensalidades da faculdade atrasadas e só poderá fazer as provas do semestre e continuar os estudos se quitar essas dívidas.

Sempre foi apaixonado pelas aulas de história e também por política. Conhece a biografia de quase todos os líderes esquerdistas e cita muitos escritores desconhecidos da maioria dos jovens da sua idade. Quando surge uma dúvida sobre alguma coisa que quase ninguém sabe, certamente a resposta pode ser obtida com ele.

É ateu e não gosta muito de falar sobre isso, talvez para não ofender os amigos crentes. Seu sonho era estudar Filosofia na USP, em São Paulo, mas desistiu por causa das despesas que teria com moradia e alimentação. Preferiu arriscar um curso numa faculdade particular com a intenção de dar aulas como substituto e custear seus estudos. Como está no primeiro semestre, ainda não pode atuar como professor.

 

VERÔNICA, 17 ANOS.


Estuda numa escola técnica pública. Fez essa escolha porque pretendia fazer um ensino médio gratuito e também pontos para o ENEM, um exame nacional de ensino médio que dá acesso às melhores faculdades públicas do Brasil e também nas particulares.

Seus pais são enfermeiros e trabalham no mesmo hospital. Verônica tem uma irmã mais velha, de 22 anos, de quem gosta muito e que trabalha em uma empresa de serviços portuários.

A Irmã precisa fazer um aperfeiçoamento de inglês para conseguir um cargo melhor na empresa de comércio exterior. É um curso muito caro, mas que dá bons resultados para quem já tem algumas noções do idioma. Precisa ser fluente, para conversar diretamente com clientes no exterior.  Verônica quer arrumar um jeito de ajudá-la. Pensa nisso o tempo todo.

O irmão mais novo de Verônica, de 14 anos, é viciado em crack. Vive roubando dinheiro e coisas em casa e na vizinhança. Já foi pego diversas vezes e dizem que tem dívidas com traficantes. Eu mesmo vi quando um deles estava reclamando um pagamento e cobrando uma posição dele sobre vender drogas na escola. Pensei em falar para a Verônica ou para a irmã dela, mas tive medo de que elas se ofendessem.

Verônica quer ser psicóloga ou médica psiquiatra. É muito observadora e nada causa estranheza a ela no comportamento dos outros. Mesmo assim não tive coragem de falar desse envolvimento do irmão.

O Irmão da Verônica gosta muito do Hugo. O Hugo também gosta dele. Quando se encontram, se cumprimentam como se fossem irmãos, com muita alegria e brincadeiras, apesar da diferença de idade.  O Hugo já gostou da Verônica e o irmão sabe disso.

Enquanto discutiam e falavam de si e sobre suas razões para ficar ou devolver o que eles tinham encontrado, reparei que, em nenhum momento, veio à tona a identidade do dono daquela carteira muito atraente e recheada.

Quem seria ele?

Todos pareciam saber de quem se tratava já que, durante a conversa, os quatro falaram muito sobre a sua aparência, seu modo de vida, seus hábitos e costumes, parentes conhecidos, amigos das redondezas.

Interessante é que o dono não comunicou a perda da carteira. Perguntaram para os funcionários da Estação se alguém havia reclamado ou devolvido algum objeto de valor parecido e receberam prontamente uma negativa.

De repente a Verônica, um pouco assustada e ao mesmo tempo irônica, levanta uma dúvida:

“E se ele já sabe que a carteira está com a gente? Não acham estranho ele não ter dado falta da carteira e não ter tomado nenhuma providência? Deve ter denunciado todos nós e a polícia já está sabendo de tudo e está só esperando a melhor oportunidade de prender a gente”.

“Nós não podemos ser presos. Somente o Gabriel pode, porque é maior de idade”, disse Samantha.

“Gente, gente, achar uma carteira e demorar para devolver não é crime”, reagiu o Gabriel, dispersando a conversa para outros assuntos.

E todos parecem ter concordado com o argumento dele, pois ficou bem nítido em seus rostos - pelo menos tive essa impressão - que cada um deles voltou a fazer os antigos planos de como gastar o dinheiro encontrado.

Mesmo presenciando tudo isso tenho dificuldade para acreditar que essas pessoas estão abaladas em suas convicções sobre ética e honestidade. Cheguei a pensar que o Gabriel está fazendo um jogo, um teste, uma prova de resistência moral entre eles, pra ver quem se supera e quem não resiste e sucumbe.

Ele gosta muito dessas coisas de provas e vive falando sobre a maçonaria e como os maçons são testados para serem aceitos na irmandade; vivia dizendo que seria maçom e iria liderar uma confraria de jovens “Demolay”.

O Hugo também fala muito nisso e disse que as provas iniciáticas são barra pesada e que já eram praticadas nas escolas de sacerdotes do antigo Egito.

A ideia da iniciação é testar as reações das pessoas diante de coisas banais, situações conflitantes, principalmente de medo e embaraço, mas que podem definir o caráter delas. Tenho medo da morte e o Hugo disse que, nesse caso, se quisesse ser maçom, eu teria que deitar dentro de um caixão de defunto durante alguns minutos, para experimentar a sensação de ser velado e depois enterrado. Medo da água, do fogo; reação ao saborear coisas amargas ou picantes, tudo isso pode ser usado para testar as reações e competências de um iniciado.

Será que eles estão formando uma confraria mesmo, como já tinha desconfiado?

Será que o Gabriel é o líder e já está aplicando a iniciação?

Será que estou sendo observado para saber se posso entrar para o grupo ou estão apenas tirando uma onda como a minha cara?

Será mesmo que eles já convidaram o Hugo e deram uma tarefa difícil pra ele executar?

Pode ser que o dono da carteira também seja um iniciado em alguma dessas ordens secretas e tenha concordado em emprestar seus pertences para a realização dessas provas e que o próprio Gabriel também esteja sendo testado como líder e condutor do novo grupo de jovens do tipo Demolay.

É possível.

Que missão será que deram para o Hugo?

Desaparecer, provocar mistérios e muitas dúvidas?

Dizem que as dúvidas são mais importantes do que as respostas nessas escolas de iniciação. Lembrei do filme “O Labirinto do Fauno” e daquela menina passado pelas provas apavorantes.

A carteira acabou voltando para a sacola e a sacola para a mochila do Gabriel.

Hoje o tempo de Estação passou muito rápido.

Dessa vez todos pegaram o primeiro trem e cada um seguiu seu destino adiando, mais uma vez, a decisão do que fazer com o dinheiro e os demais pertences do dono da carteira.

Não percebi direito mas acho que vi o Gabriel cochichando com a Samantha, talvez combinando uma reunião no final da tarde, ali mesmo.

Meu destino era continuar procurando o Hugo, antes, durante e depois dos meus afazeres. As mesmas dúvidas e sem nenhuma resposta conclusiva.

No final da tarde fui para o centro da cidade. Muita gente, como sempre. Todo mundo apressado e cheio de preocupações. Vi muitos colegas com uniforme de aprendizes, camisa branca e calças pretas, andando rapidamente pelas ruas e calçadas. Cheguei a perguntar para alguns sobre o paradeiro do Hugo, mas ninguém sabia.

Entrei numa grande livraria que fica na praça principal.  Lá encontrei um tio que não via há algum tempo. Tio Walter, professor de História e Filosofia. É escritor também.

Ele organiza cursos e faz palestras sobre problemas humanos e educação. Certa vez foi na minha escola falar sobre bullying e prevenção do suicídio. Todos ficaram chocados com as estatísticas que ele mostrou, mas também impressionados com a forma descontraída com que tratou um assunto tão pesado como suicídio. É que na minha escola tem muitos jovens falando nisso e também se cortando. A Carla não é a única.

Minha mãe fala muito no Tio Walter e tinha me contado que meu tio é um iniciado espiritual.  Ele é muito alegre, bem-humorado, não tem nada a ver com esses rituais de iniciação nem com suicídio.  Não combina com o que conheço dele.  Parece ser tão crítico e descrente. Foi casado duas vezes e tem uma filha de 18 anos, minha prima, que está fazendo faculdade de Design.

Mas esse encontro não foi por acaso, creio eu; e seria uma boa chance para esclarecer umas dúvidas.  Ele estava acompanhado de uma mulher alta, de cabelos e olhos castanhos bem escuros.

“Essa aqui é a Scarlat, minha namorada”, disse ele, meio constrangido.

Cumprimentei os dois e tive que me controlar sobre as curiosidades, para não parecer leviano e vulgar. Perguntei e respondi sobre as coisas da família e os estudos, para depois chegar onde pretendia. Ele percebeu a minha inquietação e se adiantou:

“Está com algum problema”?

“Quer me contar alguma coisa importante”?

Perguntei e ele me explicou umas coisas muito legais sobre esse assunto.

Disse que as escolas e os grupos de iniciação são bons, mas que o importante é o que eles fazem para ajudar as pessoas. 

“Ser isso ou aquilo como título não significa nada. Fazer isso ou aquilo é que é importante. E fazer sem alarde, sem barulho”.  “Ostentar títulos e ações é o mesmo que dizer que não faz parte da escola e do grupo; é se autodenunciar como um excluído natural”. 

“Estar dentro de um grupo iniciático é estar em silêncio e pronto para servir, sem exibicionismo”. 

Este era o verdadeiro segredo e mistério. Outros segredos são apenas truques de desvio de atenção das verdadeiras intenções dos mestres iniciados.

Enquanto o tio Walter falava todas aquelas coisas, a namorada dele permaneceu em silêncio e fumando. Mas ela tinha reações engraçadas. Quando ouvia algo que não concordava, apenas sorria e dava uma tragada, talvez para ajudar a digerir a informação incômoda.  Percebi nesse instante o que acontece comigo quando tenho vontade de fumar e porque me senti atraído por esse hábito. Ansiedade ou angústia despertam o desejo do fumo em mentes inquietas e em busca de alívio. Bom para a mente, péssimo para o corpo. Todo mundo sabe disso mas parece que ninguém liga.

Scarlat ficou assim, agitada e explodindo por dentro, até que a conversa fosse encerrada. Não resisti e olhei para o fundo dos olhos dela, para cobrar uma reação mais objetiva, talvez uma resposta mais próxima da minha reles capacidade de entendimento. Ela percebeu a minha intenção e se explicou:

“Não me pergunte nada sobre isso. Eu prefiro estudar a biografia dos santos da Igreja”.

E apagou a bituca numa caixa de cigarros que trazia nas mãos e que já estava vazia.  Entendi porque o tio Walter ficou constrangido ao apresentar a namorada.

Mas, ao invés de ajudar, o tio Walter aumentou ainda mais as minhas dúvidas sobre o que estava acontecendo na minha escola e com os meus amigos. Acho que ele fez de propósito.

A Scarlat também me deixou mais intrigado ainda com aquela história de biografia dos santos católicos.  Depois fiquei pensando e conclui que realmente os santos foram todos iniciados e que atingiram a santidade passando por provas e muitos sofrimentos. Qual seria o santo preferido dela. O tio Walter disse que ela era advogada.

“Não se pode dar respostas e sim estimular a busca com mais dúvidas”, disse ele ao se despedir.

Entendi e também não entendi.

Já eram quase cinco horas. Corri para pegar o trem e ver se chegava a tempo na reunião do Quarteto, combinada para o final da tarde na Estação.  Não tinha certeza de ter ouvido o assunto do cochicho entre o Gabriel e a Samantha, mas valia a pena conferir. Quem sabe teriam mais novidades.

Não aconteceu a reunião.

Mas rolou uma outra coisa muito mais interessante.

Na volta para casa vi passar um trem em direção à nossa vila e vi também que o Hugo viajava nele.

Trajava a mesma roupa de quando nos vimos pela última vez: blusa de moletom azul com capuz cinza. Estava sem o capuz e pude ver que realmente era ele.

Ficou olhando para mim, mas não esboçou nenhuma reação quando acenei e fiz gestos perguntando o que tinha acontecido. Estava estático olhando como se eu fosse alguém completamente estranho.

Acenei várias vezes até que o trem se distanciasse e não tive resposta.

A última coisa que vi foi quando virou o rosto para procurar alguma coisa e ignorar o que estava acontecendo comigo.

Essa foi demais pra minha cabeça. Será que o Hugo pirou e perdeu a memória?

Vim direto para casa. Antes me certifiquei se realmente não havia ninguém do Quarteto ou sinais de uma reunião.

Estou muito cansado. Andei pra caramba, praticamente a tarde inteira. Quero ficar sozinho, isolado, em silêncio. Preciso pensar e analisar umas coisas. Se ficar conversando não vou conseguir entender o que está acontecendo.

Essa visão do Hugo no vagão do trem me deixou chapado.  Chego a pensar na hipótese de ter visto um fantasma, alguém que morreu e não sabe ainda o que aconteceu.

 O Hugo pode ter morrido de alguma forma acidental ou assassinado e não se deu conta do que se passa com ele. Já vi isso em vários filmes. Fiquei pensando tanto nisso que já levantei a hipótese de eu também estar morto e perdido e imaginando todas essas coisas, como forma de fugir da minha realidade.

Se estivesse morto seria fácil resolver todas as dúvidas. Já que essas visões também não são mais tão incomuns. O problema é se ele continua vivo e desaparecido. Isso sim é mistério e sobrenatural.

Será que ele está em casa? Poderia ter ido direto para casa dele também, mas fiquei com medo. Vi a casa de longe e percebi uma grande movimentação de carros, aqueles carrões pretos de funcionários do governo e também carros militares. Gente entrando e saindo, tudo gente importante, amigos dos pais dele.

Será que descobriram que o Hugo morreu e eu tive uma visão do espirito dele andando de trem? Ou será que ele só voltou para casa.

Quer saber de uma coisa, vou lá. Ainda deve ter bastante gente e dá pra saber o que tá rolando.

Não falei? Não tem tanta gente, mas sempre tem uns curiosos que sabem de alguma coisa porque ouvem o que não deveriam ouvir, mas que ouvem sem querer ...

E é assim que acabo de saber que morreu alguém na casa ou na família do Hugo. Não foi a mãe, pois vi ela passando duas vezes pela janela da sala, acompanhada de amigas. Estava triste, de cabeça baixa.  A mãe do Hugo é muito bonita. Tem  olhos verdes e um olhar profundo, inquiridor. Olha pra gente como se estivesse lendo a nossa alma. Agora vejo ela de cabeça baixa e imagino se aquele olhar continua o mesmo.

A janela do quarto do Hugo está fechada somente com a veneziana, o que indica que ele pode estar lá, mas também pode estar morto, em cima da cama e coberto com um lençol esperando a chegada do carro da funerária; ou pode estar vivo, trancado no quarto, sem poder falar o que está acontecendo.

Pode ter sido o pai dele, mas é pouco provável. Só se morreu no exterior e estão preparando o translado do corpo para o Brasil.

Pode ter sido também a avó dele, que já é bem velhinha. Mas, sinceramente, se fosse ela, não dariam tanta importância com essa movimentação toda. Tadinha.

O pai do Hugo é coronel do Exército, quase um general. Se aposentar, vira general. Parece que cada graduação militar tem um número limitado de cargos e tem que esperar a promoção por concurso ou indicação, sei lá.  O Hugo já me mostrou umas fotos dele de uniforme trabalhando no Haiti, na época que a seleção brasileira foi jogar futebol lá. Eles não publicam coisas pessoais no Face. Ele usava uniforme verde de camuflagem, mas com capacete azul, indicando que estava a serviço da ONU, em missão de paz.

 Hugo queria ir para o Haiti, mas não como militar. Queria formar uma ONG, um grupo de jovens para ajudar a população pobre de lá. O pai dele achou legal a ideia, mas disse que seria impossível. Seria muito perigoso, pois ainda existia uma guerra civil por lá.

O pai dele já está velho, mas ainda forte e ágil. Deve se exercitar muito pra manter a forma. Mas tem um olhar vago e triste. Sorri com muita discrição. Nunca ouvi a voz dele. O Hugo diz que ele é uma cara muito legal, não tem nada a ver com esses militares rígidos e super disciplinados. Também gosta de arte, principalmente de música clássica e ópera.

O Hugo me contou que o pai dele vem de uma família de militares do sul do Brasil, desde a época do império. São descendentes de alemães. O avô foi e muitos tios e primos do pai dele são oficiais do Exército também.

O meu amigo contou também que um dos tios dele, durante o regime militar, influenciado pelo Capitão Lamarca, desertou do quartel e tentou formar uma guerrilha para combater a ditadura do presidente Médici.  A família conseguiu prender ele num quartel distante e isolado, para abafar o caso. Ficou quase quatro anos preso sob a tutela de parentes militares. Depois esse tio dele foi viver na Europa, trabalhando numa embaixada do Brasil, como adido militar.

Não tem ninguém por perto que possa me dar alguma informação sobre o que está acontecendo. O what’s do Hugo está desativado. O Face também.  Já rondei a quadra inteira e não tive nenhuma chance de falar com ele ou com alguém que frequenta a casa. Nenhuma das empregadas saiu para ir pra casa ou fazer qualquer compra, como de costume.

Já está quase escurecendo. Ninguém vai desconfiar da minha presença aqui na praça em frente da casa. Tem outras pessoas do bairro, com crianças e passeando com cachorros.  Do outro lado tem um grupinho de mulheres conversando em pé e pelo jeito o assunto é o babado da casa do Hugo.

Vou passar por perto, como quem não quer nada.

Sem querer...ouço uma delas dizendo que aconteceu algo muito grave com o Seu Alfredo, pai do Hugo, um atentado com arma.

“Mas não foi no Haiti. Ele estava sozinho no sítio da família, ouviram tiros e encontraram ele ferido. Parece que o caseiro foi quem achou ele caído no quarto e chamou socorro”.

Nisso a conversa pegou fogo e foram surgindo muitas outras informações desencontradas e até absurdas, sem nexo, fofocas. Perdi o interesse e fiquei mais atento na casa.

Já está escuro e as luzes da praça estão todas acesas. Está um pouco frio, mas as nuvens estão carregadas e escuras.  Aqui não tem lugar para se abrigar, caso chova. Vai ser osso ficar espionando na chuva. Acho que vou em casa pegar uma capa e um guarda-chuva. Aí posso esticar até a madrugada se quiser.

Já são nove horas. Quase ninguém na praça. O portão da garagem da casa do Hugo está totalmente aberto. Poderia entrar lá inventando uma desculpa qualquer de um boato de acidente e pedir informações.  Seria arriscado e muita ousadia. Mas não custa nada. Melhor do que ficar aqui plantado, sozinho.

Antes que eu chegue perto da casa uma luz de farol acende e logo em seguida um carro sai bem devagarinho. Estou na rua, quase na calçada e vejo bem de perto que no carro tem quatro pessoas. É um carro comum, esportivo, alto, mas com vidros claros.

O Hugo está no banco de trás ao lado da mãe e me vê. Está sério e dessa vez acena com um sinal de positivo, sem poder dizer mais nada. Só olha, mas nesse olhar tem um sinal de tristeza e talvez incerteza.

Alguém fecha o portão e o silêncio volta a reinar na casa e na praça.  O Hugo foi embora. Pra onde ninguém sabe. Ou melhor, eu é que não sei.

 HUGO, 17 ANOS.

O pai é da alta oficialidade das forças armadas e a mãe funcionária de um importante órgão do governo federal. Se não me engano é diplomata e trabalha junto às embaixadas, não sei bem. O pai está em missão no exterior, na América Central e sofre de depressão severa.

O Hugo é filho adotivo. É um artista plástico de muito talento. Teve uma boa formação escolar e uma infância relativamente tranquila. No início da adolescência fez intercâmbio no exterior, onde adquiriu fluência em inglês e francês.

Mas sempre reclama de ser alguém muito solitário, apesar de ser um tipo muito agradável e de estar sempre rodeado de pessoas.

É de uma classe social mais alta, mas não curte o círculo de amigos da sua família, preferindo se vestir de forma mais simples e de estar na companhia de jovens de classe mais popular, com quem se identifica e se sente mais à vontade.  Esse talvez seja o motivo de sentir-se solitário, já que, em inúmeras circunstâncias, não pode compartilhar suas experiências sociais com os amigos mais íntimos.

Filho único, os pais de Hugo gostariam que ele seguisse a mesma carreira deles, fazendo um curso superior e um concurso público de alto escalão.

Hugo compreende a preocupação dos pais, mas quer seguir a vida artística. Chegou a pensar em se preparar para uma carreira diplomática para residir no exterior e ter mais tempo e liberdade para dedicar-se aos seus dons artísticos. Porém, considera isso um privilégio que a maioria dos seus amigos não teriam, passando a ver essa ideia como algo injusto e imoral. Quer vencer por si mesmo e de preferência com a sua arte.

Ultimamente tem estado muito triste, não por causa de algum acontecimento externo, mas por algo que não consegue explicar, uma sensação de vazio e cansaço.

Partindo pra casa, novamente cheio de pensamentos, dúvidas. Pelos menos o Hugo está vivo. Não sei se está tudo bem com ele e com a família, mas está vivo. Me sinto um pouco melhor, mais aliviado.

Provavelmente não vou dormir e ficar pensando a noite inteira sobre o que aconteceu hoje e agora há pouco. Mas pelos menos minha cabeça vai se manter ocupada.

Nem tudo está perdido.

Preciso e tenho que pensar também no caso do Quarteto Fantástico.

O mistério da carteira recheada continua e todos me devem uma explicação científica sobre o assunto.

 

INVERNO – ESTAÇÃO DÚVIDA

Quando descubro que por trás do segredo existe um problema

muito mais grave e que muitas outras pessoas estão envolvidas.

 

 


18 DE MAIO

QUARTA-FEIRA

São 6:30 da manhã.  Já estou na Estação há mais de 20 minutos. No caminho para cá encontrei o Seu Gilberto, pai da Larissa, amiga muito querida da época do ensino fundamental. Ele ficou contente por me encontrar e lamentou eu não ter ido mais na casa deles. Sempre ia lá pra estudar e fazer trabalhos. 

A mãe da Larissa também gostava da nossa amizade. Ajudávamos os irmãos menores dela a fazer as lições de casa.  Hoje ela trabalha no comércio, estuda à noite e vai tentar uma vaga na Universidade Federal.

Seu Gilberto é porteiro de prédio e ficou viúvo há pouco tempo. Com a morte da mãe, Larissa teve que assumir a responsabilidade de cuidar dos irmãos. Ele está muito preocupado que ela tenha o mesmo destino da mãe, que trabalhava em casa e também em outras casas para aumentar a renda.

“Era muito fraquinha e não aguentou tanto serviço”, disse ele triste e de cabeça baixa. “Preciso me aposentar logo pra poder cuidar mais dos meninos e deixar ela livre pra tocar a vida dela. Ela precisa estudar e desse jeito que ela anda, com tanta responsabilidade, vai acabar doente igual a mãe dela. Isso não é vida pra ela não”.

De todos os meus conhecidos e amigos, ela é a pessoa mais confiável. Sempre fomos muito próximos e confidentes, como irmãos. Cheguei a pensar que ela gostava do Hugo, mas foi só uma impressão. Ela é muito madura e compreensiva.

O Hugo é apaixonado pela Larissa, mas ela nunca ligou pra isso. Larissa é muito bonita, uma beleza simples, mas linda, menina muito delicada, mignonzinho. Ela nunca quis conversa porque acha que ele é de outro mundo social. E é a pura verdade.

Mas ele não gostou dessa rejeição. Na verdade, a Larissa não rejeitou o Hugo, apenas não rolou, por esses motivos. Talvez ela até gostasse um pouco dele, mas teve medo de complicar as coisas para ela e para os pais. E também para o Hugo e a família dele.  Ele ficou sentido e foi se afastando dela. Não gostava de tocar nesse assunto comigo.

O Hugo não aceita a família dele e quer ser gente simples como nós.  Os pais e os parentes esperam dele aquilo que toda família vem esperando e cobrando dos seus membros em várias gerações. Mas ele não suporta essa pressão e, de vez em quando, entra numa rota de fuga.  Já me disse que pensou em suicídio várias vezes. Sente-se um estranho no ninho. Na casa dele tem armas e munições de vários tipos.  Não seria difícil fazer isso.

Para evitar essa sensação de estar sempre se sentindo encurralado, prefere cultivar amigos e coisas simples, como forma de aliviar todas essas cobranças, mesmo que silenciosas.

A minha amizade com o Hugo é bem isso. Acha que sou mais feliz do que ele apenas por não ter que dar explicações pra ninguém sobre o que vou fazer com o meu futuro. Ele adora dormir em casa e sente inveja do meu modo de vida e da minha relação com a minha mãe, tudo sem as complicações da vida burguesa.

Então, vendo por esse lado, a Larissa seria para ele uma musa da simplicidade, de vida pacata e feliz. Para ela, ao contrário, o Hugo seria um problema constante, alguém que não suportaria as reais responsabilidades de uma vida simples de trabalho e de compromissos cotidianos. Logo ficaria entediado e deprimido.

A Larissa me disse essas coisas sobre ele e fiquei impressionado. De onde ela poderia ter tirado essa conclusão tão madura e realista, senão da própria experiência familiar dela?

Nunca havia reparado ou parado para pensar nisso. Fiquei até revoltado com o Hugo, me sentindo usado, mas depois entendi o lado dele.  Até revi a minha posição de invejar ele com toda aquela vida de confortos, grana no bolso, de roupas boas e de grife, de viagens, de geladeira sempre cheia e de armários de mantimentos sempre fartos.

Terra me chamando.

Samantha e Tarso na área. Já estão conversando sobre algum segredo. Se bem que agora não tem muito o que esconder. Não entendi direito até agora como deixaram que eu soubesse todas essas coisas.

Foi bom ter encontrado o seu Gilberto. Mas fiquei com uma leve impressão de que ele não estava preocupado somente com a Larissa. Alguma coisa mais grave tinha acontecido. Pode ser que esteja muito doente e está com receio de morrer e deixar os filhos abandonados.

Senti que ele estava angustiado e chegou e me dizer que sentiu muito a minha falta. Disse que achava que eu ia casa com a Larissa e que a mulher dele pensava a mesma coisa, mesmo brincando, pois via que a gente se dava muito bem. Coitados. Parece que a mãe já sabia que ia partir muito cedo e agora o seu Gilberto pensa que vai acontecer o mesmo com ele.

Qualquer hora dessas vou lá conversar com ele com mais calma e dizer que vou cuidar da Larissa e dos meninos, como amigo e irmão. Quem sabe ele fica mais tranquilo.

Como pude esquecer e me afastar esse tempo todo da Larissa? Ela poderia ter me ajudado de alguma forma durante esses dias e me dado uma luz sobre tudo isso que está acontecendo. Ela deve estar muito ocupada, mas certamente pensaria coisas boas a respeito e teria explicações muito melhores.

Larissa sempre disse que queria ser médica. Via a mãe fraca e tossindo pelos cantos da casa e isso despertou nela a vocação pela cura. Bem antes de terminarmos o nono ano ela já tinha lido quase todos os livros de ciências e biologia da biblioteca da escola. Muito inteligente, só tinha notas boas e fazíamos melhores trabalhos, em todas as matérias.

Hoje alguém esqueceu um jornal no banco da estação. Estava dobrado e, mesmo assim, o vento penetrava e sacudia as folhas como se tivesse chamando a atenção de quem passasse por ali. Aquele jornal queria muito ser lido. Sentei rapidamente ao lado dele e esperei um tempo pra ver se o dono aparecia.

Lembrei da escola e de dois professores. Seu Ênio, de Geografia, sempre lendo e comentando seu jornal em sala de aula. Fazia perguntas pra nós sobre as notícias. Ninguém sabia responder e então ele explicava. Dizia que a parte mais importante do jornal era o “editorial”, a opinião do jornal sobre um assunto do momento.

Sempre que leio jornal lembro dele e faço com prazer e atenção. E da Dona Agnes, de História, professora linda e provocante. Ela tem o dom de profetizar o destino e as profissões dos alunos. Disse que eu seria jornalista e publicitário.

Abrindo e estendendo o jornal, olhei rapidamente a primeira página e logo fui para a página seguinte. O editorial se destacava entre as demais sessões. O dono do jornal não voltou e pude ler tudo.

É uma denúncia sobre gravidade do suicídio na cidade vizinha. Um estudo psiquiátrico revela a alta incidência de casos entre idosos das classes média e alta: homens maduros, viúvos, separados, sem vínculos religiosos, solitários e deprimidos. A maioria se joga de andares altos dos prédios onde moram ou usam arma de fogo.

Porém, a falta de registros adequados pode ocultar o problema nas demais faixas de idade e outras classes sociais. São os casos mascarados e não explicados.

Os suicídios mascarados são comuns em acidentes, uso excessivo de drogas, bebidas e medicamentos; nas profissões perigosas (que usam armas) e até nos chamados esportes radicais. As automutilações (cortes) têm camuflado a intenção e atos de suicídio entre adolescentes. É um grave problema de saúde pública existente no mundo inteiro, mas que pode ser prevenido em até 90% dos casos.

Segundo a OMS- Organização Mundial da Saúde, 850 mil pessoas se matam todos os anos no mundo. Isso significa a nossa região de oito cidades sendo riscada anualmente do mapa do planeta.

O editorial afirma também que, entre 2000 e 2015, se mataram 421 pessoas na cidade e que essa estatística pode ser ainda maior, por falta de registros adequados. É a maior taxa de suicídios do estado e uma das maiores do País.

Pensei no seu Gilberto e num monte de pessoas. Pensei em mim também, se quando ficasse velho saberia enfrentar um problema como esse.

O suicídio é uma escolha?

A maioria das pessoas que se matam pensam que não existe solução ou alternativa para seus casos e por isso decidem dar fim à vida.

Para filosofia esse é um assunto da mais alta significância existencial. Sempre duvidamos se realmente temos o poder de escolher o nosso destino (livre arbítrio) ou se somos restringidos pela realidade e limitados pelas circunstâncias (determinismo).   

Para a ciência é um fenômeno psicológico ou neurológico e também social. Pessoas que se matam possuem um histórico de doença mental ou estão sofrendo graves transtornos comportamentais. Mesmo assim, na maioria dos casos, podem tomar, sozinhos ou estimulados por algum fator externo, a decisão de cometer suicídio.

Para as religiões, cujas crenças e valores influem muito no comportamento humano, o suicídio é um erro irreparável; um pecado literalmente mortal, tão grave quanto o homicídio.  Se matar é desafiar Deus e suas leis sagradas. Muitos se matam porque cometeram erros que as religiões condenariam e assim acabam cometendo um erro mais grave que é o suicídio.

O suicídio é um tabu social e religioso. Quase ninguém gosta de falar, a não ser nos detalhes mórbidos de como se deu a morte. Assunto proibido, tão proibido que os suicidas não podiam, até pouco tempo, serem enterrados em sepulturas cristãs. Seus corpos eram enterrados em valas comuns, em algum lugar que não os solos sagrados. Nos cemitérios israelitas, por exemplo, os suicidas são enterrados separados dos não suicidas.

Nas crenças religiosas geralmente os suicidas vão para um “inferno” purgar seus crimes contra a vida, em lugares infernais ou no inferno da consciência deles mesmos. Amargam sofrimentos tenebrosos e inimagináveis, segundo alguns relatos “dantescos”.

Muitos livros e filmes mostram essas diferentes formas de ver o suicídio, sempre acentuando a alta gravidade do gesto de escolha e, bem ou mal, uso do livre arbítrio.

Me chamou a atenção o fato de que o suicídio é muito comum entre os artistas, principalmente os escritores. Fui buscar mais dados e encontrei um livro cujo título é aparentemente contraditório: “Memórias de um suicida”.

Como um suicida pode se lembrar de algo se não está mais vivo?

É um relato pós-morte bem denso atribuído ao escritor português Camilo Castelo Branco (1825-1890) que encerrou sua vida terrena com um tiro no ouvido, fugindo dos tormentos de uma cegueira. Não li o livro com todo o cuidado que ele merece, mas encontrei e ouvi inteirinho os CDs de uma rádio novela adaptada da obra, em formato de áudio-book.  Esse livro, ditado por Camilo à escritora Yvone do Amaral Pereira (1900-1984) - embora de conteúdo muito forte e religioso - tem servido de inspiração e motivação para muitos trabalhos de prevenção do suicídio. Aqui os suicidas são amparados por grupos socorristas piedosos (Legião dos Servos de Maria), porém mostrados como delinquentes, degenerados e criminosos cuja regeneração mental acontece em manicômios e por meio de graves e dolorosas experiências reeducativas.

Estou perplexo. Ninguém gosta de falar sobre suicídio. No entanto, em uma sala com 30 pessoas, 5 delas já pensaram em suicídio.

Deixei o jornal sobre o banco, dobrado e contra o vento.

Estou com umas ideias na cabeça sobre como reunir pessoas jovens e criar um grupo, tipo ONG, para fazer alguma coisa de importante a respeito de tudo isso. Alguma coisa parecida como o Médicos Sem Fronteiras ou o Green Peace, com um grupo de voluntários jovens lutando por uma causa humanitária diferente e ao mesmo urgente. A Larissa poderia ser uma boa companheira para me ajudar desenvolver essa ideia. Tem bastante jeito pra isso.

Fico imaginando que todos esses meus amigos e conhecidos são jovens e todos tem muitos problemas pessoais, mas também possuem sonhos e projetos de vida.

Penso bastante sobre como poderia dar um rumo totalmente diferente em minha vida me dedicando a uma causa humanitária. Isso seria muito bom para mim e me ajudaria a descobrir coisas para as quais ainda estou perdido e sem definições.

Tenho amigos que frequentam igrejas, clubes, partidos políticos, mas quero fazer alguma coisa diferente, como um propósito mais forte e urgente, sei lá. Alguma coisa que, de repente, pudesse reunir todos eles. Quando penso sobre isso até me dá uma coisa no peito, sensação de anseio e vontade de realizar alguma coisa.

Larissa. Preciso ver a Larissa.

Depois da escola vou até o centro e espero ela sair da loja. Espero que não esteja com algum namorado, pois preciso falar de todas essas coisas com ela e uma pessoa estranha não entenderia.

Estou pensando tudo isso, mas também estou de olho no Tarso e na Samantha.

Cumprimentei os dois e fui logo perguntando o que rolava e também de alguma novidade. Os dois tiraram uma onda na minha cara, sobre essa minha curiosidade de tratar de coisas sérias que estavam acontecendo como se fosse uma brincadeira. Fiquei sem jeito com a sinceridade deles. Estavam certos. Fiz isso só para puxar assunto, mas foi muito mal.

Para limpar a minha barra disse que o que estava sendo conversado poderia ser compartilhado de forma positiva, já que poderia servir pra ajudar muitas pessoas com os mesmos problemas.

Deu certo.

Foi então que a Samantha contou que havia assistido a uma palestra na Associação Comercial sobre prevenção do suicídio, durante as aulas para menores aprendizes. Disse que o pessoal tinha achado meio “sinistro” esse assunto, mas que gostou muito da forma como foi falado, numa linguagem bem clara, sem frescuras. Ela me mostrou uma cartilha feita por uma ONG que reúne voluntários para ouvir pessoas solitárias e angustiadas.  Falou um monte de coisas sobre essa e outras ONGs espalhadas pelo mundo e que fazem um trabalho idêntico.

De todas as informações a que mais chamou a atenção foi uma sobre um grupo de jovens da França e do Marrocos que formaram um “peti comitê” para falar abertamente sobre problemas emocionais. Eles são ligados a uma antiga ONG francesa chamada S.O.S L’Amitiè.

Enquanto a Samantha falava eu estava pensando uma coisa: juntar a empolgação dela e a ajuda da Larissa, que provavelmente deveria saber algumas coisas sobre isso.

Falei para os dois sobre a minha ideia de formar um grupo como esse de jovens franceses e marroquinos. Disse que a gente poderia se reunir na escola ou então lá mesmo na Estação, caso o pessoal da escola não gostasse da ideia.

A Samantha argumentou que poderíamos convidar a pessoa que fez a palestra na Associação Comercial para fazer o mesmo na escola.

O Tarso achou tudo interessante, porém lembrou que as reuniões na Estação são livres e que ficaríamos mais à vontade para ter ideias e tomar decisões. E deu uma sugestão muito boa para iniciar a organização:

“Nosso comitê poderia se chamar Estação Amizade; e poderíamos fundar outros com essa mesma marca de encontro e liberdade de expressão e ação: “Estação de Apoio”; “Estação do Amor”, disse a Samantha.

Muito legal, muito legal!!!  Poderíamos usar camiseta com essas marcas!!!

Estávamos todos sorrindo e cheio de gás com essa ideia de formar comitê e todas essas outras sacadas.




19 DE MAIO

QUINTA-FEIRA

Nossa alegria durou pouco.

Recebi agora há pouco mensagem do Hugo. O pai dele morreu mesmo e todos os familiares foram para a cidade onde pai nasceu, para o velório e enterro.  Morreu ontem, quinta-feira, no sítio da família.

Por que ele simplesmente não me disse naquela hora. Não sabia o que tinha acontecido ou não podia dizer o que aconteceu?

Fui o porta-voz dessa notícia triste para a maioria dessas pessoas que cujos nomes já citei nesse pequeno relato sobre a existência e convivência dos jovens com seus parentes adultos.

Notícia trágica. Na mensagem ele me fala que o pai sofreu um acidente. E não entra em detalhes. Para cada um a quem transmiti essa informação esbocei a mesma expressão fingindo não ter entendido muito bem o fato, nem saber de verdade o que tinha acontecido com o pai do Hugo.

Ao dar a notícia para a Larissa ela encheu os olhos de lágrimas e depois não se conteve mais. E me disse, em soluços:

“Eu acho que Hugo também vai morrer, muito em breve”.

Pensei que ia encontrar um namorado dela esperando em frente da loja onde ela trabalha, mas não havia ninguém esperando. Essa fala da Larissa não soou como uma premonição e sim como um medo de que acontecesse algo de ruim

Naquele momento entendi que o namorado o Hugo era o namorado dela. Era sem nunca ter sido, sem nunca ter tocado em seu corpo, nem nunca ter sentido de perto o cheiro dela, cheirinho gostoso e agradável de menina. Ela chorou bastante enquanto eu falava sobre o conteúdo da mensagem e de como o Hugo tinha desaparecido durante mais de cinco dias. Parava de chorar por alguns instantes e depois ficava com um olhar vago, para lugar nenhum, talvez pensando em coisas que poderia estar falando ela mesma para o meu amigo.

Aquela fala da Larissa sobre Hugo morrer soou para mim não como uma profecia e sim como um medo profundo de que acontecesse algo de ruim com todos nós. Nossa, isso é que é amor. Amor pelo o Hugo e por todo nós.

Mas, sobre o amor dela pelo Hugo ainda não entendo muito bem.  As pessoas são complicadas mesmo. Não se permitem ter nem uns momentos de felicidade só porque temem um tempo que ainda não chegou.

Estava morrendo de curiosidade em saber se o Tarso e a Samantha tinham se mexido ontem para falar alguma coisa para o Gabriel e a Verônica sobre os nossos planos. 

Qual seria a reação deles? Ficariam empolgados como nós ou reagiriam de forma fria achando que somos imaturos? Afinal, o caso da carteira ainda está no ar e os prazos de cada um estão estourando.

O dia deve estar sendo longo e estranho para todos que conhecemos e convivemos com o Hugo.

A tarde está cinzenta, chuvosa e fria. Pode parecer “clichê” literário, mas está exatamente assim. Logo, logo deve escurecer.

Ninguém vai poder ir ao velório e no enterro do pai do Hugo. Nenhum de nós vai poder abraçá-lo para dizer o quanto sentimos pela morte do pai dele e da nossa preocupação em saber se ele está suportando essa barra.

Com amigos por perto as coisas muitos pesadas sempre ficam mais leves.

Pensei então em enviar uma outra mensagem para os conhecidos do Hugo marcando um encontro na Estação.

Escolhi um título e escrevi uma mensagem bem curta.

 

“ESTAÇÃO AMIZADE”.

Pessoal, vamos nos encontrar na Estação e dar uma força para o Hugo? É só uns minutos pra gente saber como cada de nós está se sentindo e também compreender como o Hugo está enfrentando essa barra. Todos lá às 18 horas. Poder ser?

 

Guardei o celular no bolso e fui fazer umas coisas. Não tinha conseguido falar com a Larissa, porque ela estava sem internet e fiquei preocupado que ninguém avisasse ela. 

Decidi passar no trabalho dela antes da cinco, já que também não tinha certeza se ela poderia sair um pouco mais cedo da loja para ir ao encontro.  Poderia ter passado lá antes, mas me atrapalhei numa coisa lá de casa e acabei esquecendo.

Mas deu tudo certo. Quase certo, porque parece que a chefe dela não gostou muito da ideia quando me viu esperando do outro lado da rua. Não sei o que ela pensou, mas não importa. 

Importa é que a Larissa estava decidida a estar com a gente e me fez um monte de perguntas sobre a ideia do comitê. Até que estava bem-humorada e até sugeriu o nome “Estação Paciência”.

17:40. Estou na frente da loja onde a Larissa trabalha. Apesar de ser uma sexta-feira o movimento nas ruas só está agitado porque as pessoas provavelmente estão eufóricas por causa da chegada do fim-de-semana. Alguns curiosos entram e saem das lojas com sacolas, mas nas ruas tem muito mais gente andando pra lá e pra cá.

O País está em crise e houve troca de governo recentemente. Não foi uma troca normal, com eleições populares, mas um impedimento político votado apenas no Congresso. As classes médias estavam enfurecidas com o governo por causa da crescente perda da capacidade de consumo e do endividamento dos negócios.

Escândalos de corrupção e um nítido jogo de interesses nos três poderes acabaram derrubando o governo e colocando no lugar da presidenta, um vice-presidente, de outro partido.

Há conspirações em todos os lugares. Realmente estamos em plena Era de Aquário. Os protestos cessaram, por enquanto, pois a crise continua. Para os pobres parece que não houve muitas mudanças, pois já estão acostumados com os altos e baixos, mais com os baixos. Por isso vê-se esse movimento nas ruas e o crescimento dos negócios informais.

A Larissa está saindo da loja. E veio com uma amiga. Estão de braços dados, contentes e andando rápido na minha direção. Ela me apresenta a colega, que se chama Ariane.  Ela conhecia o Hugo e também achou interessante essa ideia de oferecer um apoio ao nosso amigo.  

Larissa e Ariane são amigas de escola e também estão fazendo um cursinho pré-vestibular comunitário. Nesse cursinho os professores são voluntários e ajudam alunos de baixa renda a se prepararem para o Exame Nacional do Ensino Médio. No caminho elas me contam as novidades e intenções e também falo dos meus planos.

Incrível como os olhos das pessoas brilham quando estão falando sobre o futuro.

Mas, apesar dos planos, o futuro da Ariane é bastante incerto, pelo menos na visão da Larissa. Ela me disse depois, muito preocupada, que a situação da Ariane é muito complicada e que não gostaria de estar no lugar dela. Teve um relacionamento com um cara bem mais velho e está grávida. O cara é casado e exigiu que ela faça um aborto o mais rápido possível. 

Bastante confusa, ela procurou a Larissa para conversar e depois disso ela mesma chegou à conclusão que deveria abortar, já que o namorado não quer assumir nenhum tipo de compromisso com ela. Abortar seria, para ela, uma solução para acabar com toda essa sensação de desencanto e desamparo.

A Larissa não deu nenhuma opinião, nem conselhos para a amiga. Limitou-se a ouvir e dizer que ficaria ao seu lado em qualquer decisão que tomasse. 

Entretanto, percebeu que a amiga não está totalmente segura dessa decisão. Ficou chocada ao receber a exigência do namorado e dos detalhes de como seria o aborto. Está com medo, pois o local não é seguro, em nenhum aspecto.

A Ariane parece que mudou de ideia também após ter tido uma experiência muito interessante: teve vários sonhos com a avó, há muito falecida, pedindo que ela levasse o filho na escola senão o filho morreria.

De longe vejo o Tarso e a Samantha usando camisetas iguais. São camisetas cor de cinza claro e no peito está escrito em amarelo “Estação Amizade”. No fundo há uma estampa branca - em alto contraste- de uma foto da estação com destaque para os trilhos do trem, sugerindo um rumo para o infinito. 

Meus olhos se encheram de lágrimas. Os dois estavam sorrindo e ficaram muito contentes com a nossa aproximação. Queriam fazer uma surpresa e conseguiram.

A Larissa também ficou muito emocionada. A Samanta correu para me abraçar e eu fiquei muito sem jeito porque ela percebeu que eu estava chorando. O Tarso nos cumprimentou e se apresentou para a Ariane. Perguntaram se tínhamos gostado das camisetas. Nem respondi. Estava engasgado e daria minha vida naquele instante para ter óculos escuros e esconder meus olhos encharcados. Nossa, que mico!!!

A Larissa se adiantou e começou a descrever e comentar os detalhes das camisetas. Queria saber onde foram feitas e quanto custaram. Queria ter uma também. “A Minha vai ser Estação Paciência”, disse brincando.

O Tarso respondeu que a ideia era boa e que cada um poderia fazer sua própria camiseta, com a cor que quisesse e com a palavra que melhor definisse os nossos sentimentos. Vi que a Ariane já estava pensando sobre como seria sua camiseta.

Passaram alguns minutos e quando percebemos já estávamos rodeados de amigos, não vários amigos, não muitos, mas principalmente os que tinham sido convidados por mim. Alguns vieram, como a Larissa, acompanhado de outros amigos.

Foi então que o Gabriel, olhando a hora no celular e também para mim, pediu autorização, somente com um gesto de interrogação, para sugerir que formássemos uma roda. Acenei concordando e logo estávamos num grande círculo.

A Verônica propôs que eu dissesse alguma coisa sobre o Hugo e imediatamente comecei a falar sobre tudo que aconteceu durante a semana. Falei da minha busca por ele, dos encontros com o Quarteto Fantástico, sobre os nossos problemas e finalmente me abri para dizer o tudo aquilo significava para mim. Disse que a minha estação se chamava Esperança.

Ali mesmo estávamos inventando aquilo que seria o nosso ponto de partida nas reuniões do comitê. Cada um definindo qual seria naquele dia a sua estação e porque estava ali.  E fomos falando, um por um, cheio de expectativas e entusiasmo.

Encerramos a reunião pedindo que a Larissa também dissesse algumas palavras sobre o pai do Hugo e sobre a dor do amigo de todos nós que estava ausente. Ela falou pouco mas lembrou de forma brilhante que o desaparecimento do Hugo e os meus desencontros com ele aconteceram para que todos nós aparecêssemos ali e nos encontrássemos para fazer algo de bom para os outros e também para nós. Pediu um tempo de silencio e que, cada um na sua fé e na sua concepção, enviasse para o Hugo e seus familiares os nossos melhores sentimentos de paz e harmonia.

E fomos nos dispersando aos poucos.

Porém, antes que isso acontecesse, observei que algumas pessoas estavam combinando um outro encontro, ali mesmo. Vi que o Tarso estava com uma fisionomia diferente e um pouco inquieto. Se aproximou da Larissa perguntando se podia falar algo muito importante. 

Percebeu que eu havia ficado curioso e me disse que depois me contava tudo com mais calma, mas naquele momento precisava falar com a Larissa.  Se afastaram um pouco e ficaram à sós por alguns instantes enquanto ele gesticulava e apontava para alguns lugares, explicando algumas coisas e também querendo explicações. A Larissa, de braços cruzados, ficou estática e de olhos cravados nele.

Depois soube que ele havia tido uma das suas experiências sensitivas e do que se tratava. Contou para ela que, durante alguns minutos, teve a impressão de que havia muito mais jovens na reunião, que não eram somente os que conheciam. 

Viu quando esses jovens, dezenas deles, muito sorridentes e festivos, se aproximavam trajando modas de diversas épocas das últimas décadas. Não deu muita importância e até achou eram de algum grupo de jovens de alguma igreja. Só deu a falta deles quando a reunião foi encerrada.

               A Larissa apenas sorriu como quem havia compreendido profundamente o que acabara de ouvir, porém deixando Tarso mais tranquilo e sereno.

Tarso talvez tinha realmente algo muito importante para dizer. Falou para a Larissa e depois para mim que todos aqueles jovens eram “Pessoas do futuro” e que, ao existirem nesse primeiro século do novo milênio, passariam por duras provações antes de causarem profundas mudanças no mundo. 

Eram uma espécie de mutantes humanos, não na aparência e nem com superpoderes mentais, mas no comportamento e no caráter. Disse mais: que todos nós, com as nossas dificuldades e obstáculos, éramos os precursores deles. 

Fiquei muito impressionado e não menos intrigado. A Ariane, ainda um pouco perdida sobre a próxima reunião, perguntou bem alto aos poucos que ainda haviam ficado:

“Aqui mesmo, às 18 horas”?

 

 

 

 

PRIMAVERA – ESTAÇÃO RECOMEÇO

Quando as coisas começam a ficar mais claras, definidas e surgem novas perspectivas para as questões que incomodam todos os envolvidos. Eu consegui, mas quem ainda está inseguro e incerto pode estacionar e aguardar, por algum tempo, até que descubra qual destino deve escolher.

 


20 DE MAIO

SEXTA-FEIRA

Durante a nossa primeira roda de conversa percebi que alguns amigos trocavam informações on line.

Em seguida, recebi pelo Messenger um convite para curtir uma nova página no Face, que foi denominada ESTAÇÃO AMIZADE.

Nela já havia postagens, quase sem fotos, relatando o que rolou na nossa primeira reunião. O Hugo, um pouco abatido, ainda com a fisionomia triste, havia postado um vídeo agradecendo a nossa força e agradeceu especialmente a Larissa pelas palavras de carinho. Disse que ficou sabendo da criação da Estação Amizade e que se orgulhava muito de ter sido acolhido nela, mesmo não estando presente.

Na mesma página encontrei um link de um site chamado BEFRIENDERS, com diversos textos sobre solidariedade e ações humanitárias criadas e desenvolvidas por jovens em vários lugares do mundo.

A Samantha e o Tarso publicaram o YouTube um vídeo falando da Estação e explicando como fizeram as camisetas do comitê.  A ideia dela não se resumia a rodas de conversa, mas também organizar encontros de ações de ajuda.

Muitas pessoas queriam saber quem eram os criadores da página e como o grupo foi organizado. Alguns responderam que não haviam líderes nem dirigentes formais e sim pessoas que tomavam iniciativas de forma responsável, com pensamento e conduta voltada sempre para o coletivo.

Todos eram responsáveis e todos eram líderes, por si e pelo grupo. Só poderia haver um centro e uma referência: o grupo, seus anseios, seus conhecimentos e suas experiências.

Todos poderiam tomar iniciativas e todas as ações eram discutidas, amadurecidas e depois compartilhadas.

Foi sugerido que a Estação Amizade escrevesse coletivamente uma Carta de Intenções contendo sua identidade, sua missão e seus valores, como já é de costume nas organizações sociais, incluindo as empresas. Essa ideia foi muito comentada e discutida entre os internautas.

Mas ainda haviam duas questões muito importantes a serem resolvidas.

Primeiro era preciso desmontar o meu preconceito sobre o Quarteto Fantástico, uma impressão infantil e totalmente desnecessária nessa altura do campeonato.

E a outra questão era o dilema sobre devolver ou não a carteira com dinheiro e cartões, achada e compartilhada entre eles na Estação.

Na verdade, as situações e os motivos que estimularam as reuniões entre o Gabriel, Verônica, Samantha e Tarso até poderiam ser de interesse pessoal de cada um deles. Entretanto, na medida que foram compartilhando suas preocupações e angústias com as pessoas em quem confiavam, as coisas saíram das particularidades e da esfera do segredo.

Logo pensei na transparência, conceito que vem sendo cada vez mais cultuado e socializado entre os jovens. Nós somos de uma geração que não admite mais que coisas de interesse público sejam tratadas às escondidas.

 

Depois de todos esses acontecimentos empolgantes voltou ao meu pensamento o lance da carteira encontrada na Estação. Tenho que falar com alguém sobre isso e esclarecer algumas dúvidas.

Tinha também que conversar com a Larissa a respeito do pai dela. Seu Gilberto não estava bem e sinceramente tive a impressão de que ele poderia fazer alguma besteira, como fez o pai do Hugo. Aquela história de preocupação com o futuro dela e dos meninos me pareceu um aviso sobre a sua intenção de se matar, por não estar suportando a ausência da esposa falecida e a incapacidade de reconstruir sua vida. Tinha algo de errado no rosto e nos gestos dele e não sabia dizer o que era.

Não encontrei o Gabriel e fui procurar a Larissa. Já era tarde da noite e fiquei esperando que ela voltasse da escola.

Ela não ficou surpresa com a minha presença. Conversamos sobre tudo que rolou e finalmente pude perguntar o que estava acontecendo com o pai dela.  Ela reagiu com um certo espanto, mas logo se viu na obrigação de se abrir comigo. Contou que o pai estava numa grande encrenca.

Seu Paulo, um antigo morador do prédio onde ele trabalha, pediu que guardasse em casa uns objetos pessoais. Confiava muito no seu Gilberto. A mãe da Larissa já tinha cuidado da casa dele, fazendo faxina, lavando a roupa.

Seu Paulo é viúvo e tem um filho, Alex, sujeito muito esquisito; é muito ambicioso e vive dando golpes no pai e nos conhecidos, por causa de dinheiro. Não podia deixar aqueles objetos em casa. Não podia deixar também dinheiro no banco. O rapaz estava furioso e provavelmente endividado com traficantes.  Seu Gilberto ficou receoso, porém decidiu ajudar o amigo. Levou para casa uma sacola com um embrulho dentro. Sabia que eram coisas de valor, mas não se atreveu abrir, pois também confiava no morador.

Seu Gilberto sempre ia trabalhar de bicicleta, mas nesse dia estava chovendo muito e decidiu pegar o trem. Na volta para casa fez o mesmo. Sentou no banco da estação e esperou para embarcar. Distraiu-se e quando trem chegou foi levantando rapidamente e esqueceu a sacola sobre o banco. Só deu por falta quando o trem já tinha avançado três estações. Desesperado e impaciente, saiu correndo de volta para tentar recuperar a sacola, mas foi em vão.

Chegou em casa transtornado. Ficou um tempão procurando a sacola e só saiu da estação quando os vigilantes pediram para ele ir para casa e se acalmar, pois alguém poderia devolver o que havia perdido. Naquela noite ele quase não dormiu.

A Larissa disse que ele ficou tão mal que teve a impressão nítida de ter visto a mãe dela entrando no quarto deles com uma xícara de chá de erva-cidreira. Sentiu o cheiro forte daquele chá que a mãe sempre fazia para ele quando estava muito nervoso. Larissa disse também que não conseguiu dormir. Pegou os dois irmãos e foi se deitar com eles no quarto do pai, tentando dar algum conforto e alívio.

Seu Gilberto teve febre a noite toda e delirou várias vezes chamando pela esposa falecida.  Larissa lembrou que ela sentia no peito a mesma sensação de angústia e desespero existente no pai. Não sabia o que fazer. A única chance era esperar que alguém devolvesse a sacola.

Não quis falar nada sobre o que sei sobre a sacola para a Larissa. Fiquei muito perturbado e quase acabei revelando o segredo dos meus quatro amigos. Mas acredito que eles vão tomar uma atitude decente em relação a isso.   Nunca imaginei que eles iriam compartilhar comigo esse segredo e também as particularidades de suas vidas. Logo eu que sempre achei que eles me detestavam e que nunca me levavam à sério.

Sorte minha que eu havia lido uns trechos da história do CVV.  Me chamou a atenção na organização – e no código de conduta -  que o sigilo dos atendimentos é base do trabalho e da credibilidade deles. Eles são vistos como pessoas de confiança absoluta para quem precisa revelar coisas muito íntimas.  E quando contam algumas histórias é porque são autorizadas ou então porque funcionam como provas incontestáveis do trabalho que eles realizam. Nesses casos eles omitem nomes ou qualquer tipo de identificação.

Li num blog chamado “Suicídio e Vida” que, certa vez, um dos criminosos mais procurados de São Paulo, chamado pela imprensa de “O Facínora”, buscou ajuda do CVV. Ligou dizendo que queria conversar com o fundador do CVV, o mesmo que tinha aparecido numa entrevista de jornal. Confiava que ele e os demais voluntários jamais o delatariam para polícia, por questão de respeito e compromisso com os seus princípios. 

               

Fui verificar o tal princípio do Código de Conduta do CVV:

 

Terceiro Princípio/ Terceira Prática

                 A pessoa que faz contato com um Posto do CVV terá respeitado o seu direito à liberdade de tomar suas próprias decisões, inclusive a de suicídio, a de romper o contato a qualquer momento e a de permanecer no anonimato.

                 Quando a pessoa que procura o CVV encontra-se propensa ou determinada a praticar o suicídio, ela obtém integral disponibilidade dos voluntários, durante o tempo que for necessário.

 


21 DE MAIO

SÁBADO

O sábado voltou. Dia frio e de muita chuva. Acordei com o caso do seu Gilberto na cabeça. Não posso deixar a Larissa na mão. Tenho que fazer alguma coisa. Não vai ser difícil. De toda a nossa turma, acho que apenas eu sei do caso da carteira.

Ela me procurou desesperada agora há pouco. Quer me ver, pois acha que seu pai vai fazer alguma besteira. Ele saiu de casa um pouco antes dela me ligar. Estava nervoso e apreensivo. Saiu a pé. Ela quer que eu a acompanhe. Estou indo. Disse a ela que provavelmente ele iria até à Estação. Marquei com ela lá.

Novamente a Estação iria ser cenário de uma história com desfeche no mínimo curioso.

Quando nos aproximávamos vimos que Seu Gilberto estava sentado e à sua volta estavam o Gabriel, Verônica e o Tarso. Ele parece estar muito tranquilo, já está até sorrindo enquanto ouve uma explicação do Gabriel. Ficamos um pouco aliviados.

Entendi logo que os quatro decidiram devolver a carteira e que tudo estava sendo resolvido.

Mas, de repente, aparece a Samantha acompanhada de dois policiais militares, um deles mulher. Ela está muito preocupada enquanto olha assustada para os amigos. Os policiais estão inquietos, talvez procurando por alguém suspeito que pudesse estar ali entre eles. Decidimos então apressar o passo, para saber o que realmente estava acontecendo.

Ao chegarmos mais perto, a Samantha foi logo perguntando para a Larissa se não havia encontrado com o Alex, filho do Seu Paulo. E se explicou: “Ele é meu vizinho e ouvi ele ameaçando o pai dizendo que ia lá na sua casa procurar o Seu Gilberto. Parece que estava armado. Esperei ele sair do prédio e desci em seguida para procurar uma ronda policial. Liguei para o batalhão pedindo socorro, mas não tive paciência de esperar. Fui atrás da ronda também. Ouvindo isso os policiais saíram à procura do rapaz.

Foi então que o Gabriel aproveitou a nossa presença e contou a todos o que tinha acontecido de fato.

Quando Seu Gilberto esqueceu a carteira estava do lado dele no banco e parece nem ter percebido a sua presença. Quando voltou para buscar, o Gabriel já tinha saído indo até o centro da cidade para procurar a Larissa e entregar a ela a sacola. Não se lembrava em qual loja a Larissa trabalhava, mas foi procurar. Se não achasse levaria mais tarde no cursinho onde ela estava estudando. Não encontrou a loja e também não encontrou ele no cursinho. A Larissa confirmou dizendo que lhe disseram que alguém procurou por ela. O Gabriel levou a sacola pra casa e só foi se dar conta do que tinha nela somente quando foi guardar em cima do guarda-roupa. E percebeu que a carteira não era do Seu Gilberto. Ficou confuso.

No outro dia viu Seu Gilberto na rua, mas não quis tocar no assunto, pois achou que ele havia roubado a carteira do Seu Paulo. Decidiu também não procurar mais a Larissa. E foi ficando com a carteira até que pudesse tomar uma decisão. Disse que conhecia o filho do seu Paulo e também achou que ele não deveria saber que a carteira estava em sua posse.  Foi então que decidiu compartilhar o caso com os três amigos. Pensaram em levar para a delegacia de polícia, mas ficaram com medo de alguma represália por parte do Alex, filho do seu Paulo.  Mesmo achando perigoso ficar com a carteira, o Gabriel decidiu se arriscar até que encontrasse uma solução.

Depois de várias conversas, incluindo a que eu havia participado, já que precisavam de uma testemunha, decidiram levar a carteira na delegacia de polícia e relatar toda a ocorrência. Seu Gilberto iria junto e eu também como testemunha.

O Gabriel me chamou num canto e fez um pedido: que ficasse em segredo a intenção que todos eles tiveram em repartir o dinheiro do seu Paulo para resolver seus problemas pessoais. Argumentou que ninguém precisava saber disso, já que tudo não passou de uma mera intenção da qual todos já haviam mudado radicalmente de opinião após a reunião de solidariedade ao Hugo e ao pai morto.

Conversaram bastante e chegaram a um consenso de que cada um deveria arcar com seus problemas sem causar nenhum dano aos outros.

Concordei. Também ofereci meu apoio a cada um deles e disse que estava muito contente com a decisão que eles tomaram. Pediram desculpas para a Larissa e para o seu Gilberto, que também reconheceu que todos já tinham cometido algum erro e que ninguém ali fez nada por mal.

Percebi que o Gabriel tinha falado do Alex, filho do seu Paulo, com um ar de muita preocupação, demonstrando uma expressão de insegurança que jamais tinha visto nele.  Me aproximei para saber se sabia algo que não conhecíamos sobre o Alex.

Ao questioná-lo percebi que o semblante dele voltou a ter a mesma expressão de medo, algo irracional que não combinava com o Gabriel que a gente conhecia. Isso também me deixou com medo, porém mais curioso.  Tinha que saber o que estava por trás dessa reação dele.

Como questionar sem ser muito indiscreto?

Lembrei, então, que foi dele a iniciativa de quebrar comigo o pacto do Quarteto Fantástico e não pensei duas vezes e perguntei na lata: “Gabriel, você sabe algo sobre o Alex e está com medo de falar?

Foi o suficiente.

               “O Alex é capaz de fazer qualquer coisa para conseguir o que quer; qualquer coisa mesmo”, disse ele movendo rapidamente os olhos de um lado para o outro, como se buscasse num tempo bem remoto uma lembrança não muito agradável. Disse que o Alex era uns quatro anos mais velho que ele e que, quando estava cursando a sétima série, teve sérios problemas por causa dele e de alguns colegas que formavam uma gangue que aterrorizava a escola”.

               “Agiam sem alarde e perseguiam de forma cruel alguns alunos que se mostravam inseguros, com cara de vítima. “Eu fui uma dessas vítimas”.

“Tinha tanto pavor deles que tremia e perdia a fala quando lembrava das coisas que eles faziam comigo e outros colegas. Fazia as minhas necessidades nas calças porque tinha medo de encontrá-los no banheiro.  Quando isso acontecia, dava um jeito de fugir da escola e não sabia nem como explicar o que estava acontecendo quando chegava em casa”.

“Eles mobilizavam as vítimas e enfiavam a cabeça delas no vazo sanitário tentando afogá-las com a descarga. Fizeram isso comigo duas vezes. Não queria ir para a escola e, por causa das ameaças, não tinha coragem de contar para os meu pais. Teve um coleguinha nosso que sumiu da escola e depois ficamos sabendo que ele havia tomado cândida, para ficar doente e ficar longe da escola ou para se matar mesmo”.

“O Alex era o cabeça da gangue, o que arquitetava os planos e escolhia as vítimas. E não acontecia nada com eles. Tudo ficava no maior silêncio.  Até que um dia cansei e comprei um canivete. Queria me defender e prometi que ia matar pelo menos um deles. Mas o medo era maior, muito maior”.

“Minha mãe acabou descobrindo o meu plano quando achou na minha cama um desenho na qual descrevia como eu os mataria, um por um. Foi até a escola e denunciou todos eles. Inicialmente o pessoal da escola quis encobrir o caso colocando panos quentes, mas logo deram conta de que se tratava de algo muito grave. Tiveram que chamar a polícia, pois um deles já estava andando armado e ameaçando alguns professores. A gangue também desapareceu da escola. Contaram pra gente que todos eles foram transferidos para escolas distantes”.

Agora tinha compreendido melhor a preocupação da Samantha. Ela se aproximou de mim e do Gabriel com a intenção de dizer algo que achava muito importante. Nos contou que no prédio onde mora havia acontecido dois casos de suicídio e acreditava que o Alex estava diretamente envolvido nisso.

O primeiro caso foi de uma mulher que se jogou do terraço, em plena luz dia. Era casada, com idade de uns 30 anos, dois filhos e tinha sérios problemas de relacionamento com o marido, bem mais velho que ela. O que chamou atenção desse caso é que essa mulher estava totalmente nua e com os cabelos soltos antes de se precipitar. Levantou os dois braços e gritava pedindo perdão para Jesus. Sempre trajava saias bem longas e andava sempre com o cabelo preso, que parecia ser bem longo e volumoso.

A Samantha presenciou tudo e nos descreveu a fisionomia dela naquele momento tão triste.

“Parecia estar completamente louca e tomada por um demônio”.

E contou que ela vinha tendo um caso com o Alex, pois viu os dois conversando e trocando carícias. Mas ele sempre se esquivava dos gestos de carinho dela, dando a entender que não queria nenhum compromisso, enquanto a mulher se mostrava sempre ansiosa e ciumenta. Com certeza ele se aproveitou da situação dela para tirar alguma vantagem. Samantha disse que, numa ocasião, viu a mulher emprestando um cartão de banco para o Alex. 

O outro caso que ela relatou foi de um menino do sexto andar, que se enforcou com fios elétricos. Os pais separaram e o menino veio morar com a mãe no prédio. A Samantha viu ele jogando bola e conversando com o Alex diversas vezes na garagem. A vizinha deles disse que a polícia a procurou para saber quem era o Alex, pois o menino tinha escrito um bilhete antes de matar dizendo que “seu único amigo de verdade” era o Alex e que estava fazendo aquilo para castigar os pais e também para “homenagear” o “melhor” amigo e também dar uma “boa lição” no pai e na mãe, que o haviam abandonado. A Samantha lembrou também que os dois porteiros e uma faxineira do prédio tinham visto o Alex exibindo fotos dos cadáveres da mulher e do menino no celular e que, ao fazer isso, sempre dava risadas de desdenho, como se exibisse troféus de estranha vitória.

Ao ouvir comigo esse relato da Samantha, o Gabriel não se conteve e começou a chorar. Não entendia como alguém poderia ser tão cruel e insensível. E ficou olhando vagamente para chão, talvez se recordando de algo que não teve coragem de falar naquele instante.

Ficamos todos em silêncio por alguns segundos e depois conversamos sobre que tipo de ajuda e socorro aquela mulher e o menino poderiam ter recebido e terem suas vidas salvas. Com quem eles poderiam contar caso se arrependessem? E se precisassem falar sobre o que sentiam e o que se passava no mundo deles?


  Recebi um convite para participar de um curso no posto do CVV em São Caetano. É um encontro regional de voluntários onde são ofertadas várias atividades culturais e de aperfeiçoamento. Parentes e amigos dos membros podem participar de curso livres e que geralmente falam sobre a natureza humana.

Quem me convidou foi a Dona Marlene uma amiga da minha mãe, que é voluntária há muitos anos. Ela trabalha numa grande empresa automobilística da região do Grande ABC e me disse que essa ONG sempre teve jovens em seus quadros de voluntários. Ela tem uma filha de 15 ou 16 anos, chamada Gabriela, muito parecida com ela e que só vi algumas vezes, quando eu e minha andávamos pelo centro da cidade e nos encontrávamos por acaso nas caçadas ou em alguma loja. Minha mãe não falou muito sobre elas porque são muito discretas e reservadas. Parece que se conheceram na igreja.  

CVV é a sigla de Centro de Valorização da Vida. Tinha ficado muito curioso para saber como funciona essa ONG. 

Achei essa parte da história especialmente muito interessante: o fundador do CVV tinha apenas 17 anos quando reuniu um grupo de pessoas, jovens e adultos para ministrar o primeiro curso de formação de voluntários e também organizar os primeiros plantões de escuta. No meio dos primeiros encontros ele foi convocado para o serviço militar. Mesmo assim continuou sua tarefa. Isso aconteceu em 1961 e, alguns meses antes, esse mesmo grupo visitava bairros na periferia de São Paulo para ter contato mais próximo e conversar com pessoas carentes.

Há alguns anos o pessoal do CVV já vem pensando ampliar a participação de jovens, por causa do aumento de casos de suicídios nessa faixa de idade. A amiga da minha mãe me disse que em Londres já existe o Samaritans Teen, grupo onde jovens conversam com jovens, sobre seus problemas e suas angústias. Na semana passada ela havia me emprestado um livro contando a história do CVV, com muitas informações e experiências interessantes.

O CVV foi inspirado ao jovem fundador por um oficial militar aposentado e que atuava como dirigente voluntário numa grande instituição religiosa e humanitária de São Paulo. Ele havia lido uma matéria sobre os Samaritanos, de Londres, numa revista paulistana e achou que seria uma boa ideia para estimular aqueles jovens que faziam incursões na periferia da cidade. Mandou um bilhete para aquele jovem de 17 anos com esse recado: “Para quem quer servir, essa é uma boa oportunidade”. Foi assim que tudo começou.

No Brasil, também há pouco tempo, um porta-voz e organizador do CVV Web (antes o CVV só fazia atendimentos telefônicos e presenciais), relatou a uma revista de grande circulação em São Paulo que o caso mais impressionante que havia atendido foi o de um avô que abusava dos netos e veio comunicar sua decisão irrevogável de suicídio, por acreditar que seu caso não tinha nenhum tipo de solução científica e que a condenação o inferno seria sua forma de cura.

Outro caso particularmente me impressionou muito. Foi a tragédia da família do senador Peixoto Gomide, ocorrida em São Paulo no início do século passado. Esse caso tem uma relação ao mesmo tempo remota e próxima com o CVV e envolveu três pessoas famosas na época: o senador e sua filha; o poeta Manuel Batista Cepelos e o médico psiquiatra Dr. Franco da Rocha. A tragédia foi relatada e publicada na época pelo jornal O Estado de São Paulo.

 

GOMIDE, 57 ANOS. CEPELOS, 43 ANOS.

SOPHIA, 22 ANOS.


Mortos quase na mesma época, Francisco de Assis Peixoto Gomide (1849-1906), Sophia Nunes  Gomide (1884-1906) e João Batista Cepelos (1872-1915) são três almas ligadas  entre si pelo destino e pela mesma tragédia.

Peixoto Gomide era um político de alto prestígio – tinha sido presidente do Estado (antigo cargo de governador) e, na época, presidente do senado estadual; e Batista era seu filho, que tivera com uma escrava da família no tempo da juventude.  Gomide tinha seguido a trajetória comum da sua classe social,  residindo na Capital paulista, com brilhante carreira, repleta de realizações. Tanto no parlamento como no governo notabilizou-se pelos projetos de modernização técnica, educacional e de saúde pública. Construiu ginásios em várias cidades (obras caras e raras naquela época) e , fato curioso, mandou reformar o antigo hospital psiquiátrico do Juhqueí e ampliar consideravelmente o número de vagas e leitos para os alienados.  Ainda jovem, casou-se com Ambrozina Pinto Nunes, filha de um próspero comerciante português, com quem teve cinco filhos: três rapazes (Mário, Bruno e Alceu) e duas filhas (Gnesa e Sophia).  Bruno faleceu ainda jovem.

Batista Cepelos foi, desde pequeno, querido e reconhecido por Peixoto Gomide, dentro dos limites dos costumes,  recebendo apoio do pai, mas tudo foi mantido em segredo. Chegou a estudar na mesma faculdade com Bruno. Socialmente era filho adotivo  de um professor  primário e não sabia que era filho de Peixoto. Foi um arranjo de convenção muito bem articulado para esconder o erro do jovem adolescente de alta sociedade e ao mesmo tempo garantir a carreira profissional e o futuro político de Gomide.  O jovem era tratado como amigo da família e frequentava a casa como afilhado, como muitos outros que o senador tinha, por causa do seu prestigio.   Nessa época, por influência do padrinho, Cepelos já havia sido oficial da Força Pública e agora atuava na promotoria do Estado.

               Foi nesse período que Cepelos desenvolveu contatos afetivos com Sophia. A relação proibida seria a causa da tragédia mais ruidosa  da sociedade paulistana naquele inesquecível ano de 1906.

Sophia e Cepelos queriam casar e Gomide obviamente não aprovava a ideia. Para manter as aparências, fingia estar indeciso sobre o futuro da filha. Tentava ganhar tempo. Os namorados, que não sabiam que eram irmãos e ignoravam o risco de incesto, insistiam e até buscavam a intercessão de amigos mais próximos do Senador.

Todos achavam que a recusa era por óbvios motivos sociais, porém Gomide acabou cedendo e até marcaram a data do enlace. Ele tinha esperança de que as coisas tomassem outro rumo e que os dois desistissem do casamento.  Mais tarde mudou de ideia. Uma mudança que refletia sua agonia íntima de pensamentos conflituosos e sentimentos confusos.

 Preocupadíssimo com os comentários nas rodas sociais e também com uma possível descoberta do seu segredo, Gomide tomou a decisão radical de impedir a união. Era o que, de certa forma, todos do seu círculo familiar e ampla rede de amigos e correligionários já esperavam. 

Inconformada com a decisão do pai, Sophia confessou-lhe que já se entregara ao namorado e que talvez estivesse grávida.  Ao saber disso Gomide ficou transtornado.  Foi procurar ajuda com o amigo e médico Franco da Rocha. Conversaram por longo tempo sobre suas condições privativas e públicas. O amigo fez de tudo para pesasse na balança da escolha tudo que era razão e emoção, separando o que deveria ser descartado e juntando o que seria justo e necessário.

Apesar da preciosa ajuda do célebre médico paulistano somente o senador só fez aumentar suas impressões negativas e sufocar sua consciência pelo remorso. Gomide permanecia refém do pavor de um iminente escândalo de grandes proporções. O médico tentou trazê-lo à serenidade, recomendando a medicação de praxe e sobretudo o enfrentamento desse pesado fardo. Foi inútil.  Não conseguiu manter-se em equilíbrio. 

Quando voltou para casa recolheu-se e fechou-se em sí numa incompreensível e assustadora condição que beirava à loucura e que em nada lembrava a sua aparente calma e tranquilidade para resolver dilemas e contradições. Naquele instante desapareceu sua conhecida capacidade de dialogar e distender. Ficou cego para tudo e principalmente para si mesmo.

Tomado pela ira e pelo ciúme, não viu mais nenhuma chance de reverter aquela situação.  Chamou Sophia em seu gabinete e consumou a tragédia enquanto a moça silenciosamente bordava um lençol.   Matou a filha com um tiro na testa, indicando nesse gesto um profundo ressentimento com a traição da filha.  Vendo Gomide apontar-lhe o revolver, Sophia teve tempo somente de dizer "O que é isso, Pai... ", ao que Gomide teria respondido: “Não é nada...”  

Em seguida, completamente perturbado, mirou o revólver  para a filha Gnesa, sendo fortemente repreendido  pela criada da casa,  que deu grito,  horrorizada com a inesperada insanidade do patrão. Gomide colocou-os na mira mas virou o revólver para a própria cabeça e atirou. Caiu ao lado da escrivaninha e ali ficou de olhos abertos e respirando em meio aos gritos de socorro da criada. 

Cepelos não estava na cidade. Não presenciou nada da imensa má impressão que tomou conta de São Paulo e das redondezas naquela semana.  Tinha ido ao interior do estado para um júri e soube do ocorrido dias depois dos funerais. Amargou sua decepção no mais íntimo silêncio vagando durante dias pela cidade como se fosse morto-vivo e complemente sem rumo. Foi muito difícil convencê-lo de que não tinha sido o pivô nem o responsável pelo ocorrido. Com exceção de alguns amigos muito próximos, todos o olhavam com ares curiosos e, para ele, inquiridores.   Voltou-se contra si, como num processo no qual reunia provas irrecusáveis para comprometer sua reputação. Transformou-se num hábil auto-algoz no tribunal da consciência. Acusava-se sucessivamente sem a mínima chance de defesa e justificativa. Foi cruel ao extremo consigo a  ponto de acreditar que havia escolhido a profissão de acusador por punição divina antecipada.   Nos dias que seguiram à tragédia quase ninguém o via frequentando os lugares onde era visto com frequência. Os amigos poetas e leitores já contavam com uma enxurrada de novas páginas expondo em detalhes todas as suas impressões pessoais sobre o que os jornais tinham publicado ou omitido. Estavam enganados. Cepelos silenciou-se por completo.   Foi aos poucos perdendo o interesse pela vida comum e mergulhou no ostracismo. Tinha um certo prestígio como poeta e também vasto campo para novas desilusões, mas não quis mais escrever. Largou tudo e foi morar no Rio de Janeiro. Queria esquecer de tudo e de todos e quem sabe de si. 

Essa imprudência, já dando sinais claros da grave autopunição, lhe causou muitos aborrecimentos. Passou muitas necessidades e  teve até que vender seus livros de porta em porta para sobreviver.  Acreditando estar longe de tudo que o atormentava Cepelos ficou perigosamente muito perto de si mesmo. Algum depois foi encontrado morto numa pedreira ao pé de um morro. Quase ninguém duvida que precipitou-se também nas trevas do suicídio para fugir das angústias daqueles dias terríveis de provação.


FRANCISCA JÚLIA, 49 ANOS


Outra relação próxima e remota com o CVV foi o caso de Francisca Júlia , que morreu de tristeza profunda no dia do velório do seu marido, também em São Paulo.

Francisca Júlia da Silva (1871-1920) era poetisa parnasiana. Ela e Cepelos, que também era parnasiano, nasceram quase na mesma época sendo, portanto, na mesma geração. Nasceram com diferença de dois anos e morreram com intervalo cinco. Provavelmente se conheciam e frequentavam os mesmos eventos sociais do gosto dos literatos. Os dois eram figuras bem conhecidas do meio artístico paulista e carioca.

Alma muito sensível e inquieta, Francisca Júlia deixou sua cidade natal, Xirica, no interior de São Paulo (hoje Eldorado) ainda jovem para viver na Capital paulista.  Colaborava com jornais e revistas e publicou obras que lhe deram muito prestígio no meio literário.

No apogeu da sua carreira decide residir novamente no interior, agora na cidade de Cabreúva, onde sua mãe era professora de escola pública. Era o ano de 1906 e ali teve um romance com um jovem farmacêutico. Entretanto, não quis noivar nem casar-se porque percebeu que o namorado sofria de problemas mentais. Nessa época dava aulas particulares para crianças e também ensinava piano.

Seu espírito cosmopolita a trouxe de volta à capital em 1909, onde logo recuperou suas antigas atividades culturais. Conheceu o telegrafista Philadelpho Edmundo Münster, com quem contraiu núpcias. Viveram juntos até 1920, ele doente de tuberculoso, doença incurável na época; e ela sempre às voltas com uma depressão crônica. Nessa época a poetisa outrora cultuada e presente em quase todos os eventos sociais da cidade, mantinha-se reclusa. Muitos se afastaram dela porque tornou-se adepta de ideias espiritualistas e de reencarnação, preocupando-se muito também com as ações de caridade. 

No dia 31 de outubro de 1920, já muito doente, Philadelpho veio a falecer. No dia seguinte, não suportando a ideia de viver um longo período de ausência do marido, cometeu suicídio ingerindo uma alta dose de narcóticos. Tiveram juntos, segundo anúncios de jornais da época,  a celebração de suas missas de sétimo dia.

Foram essas duas histórias trágicas que motivaram os jovens fundadores do CVV, Jacques André Conchon e Flávio Focássio, a iniciarem no Brasil as atividades de prevenção do suicídio em 1961. Jacques tinha com Francisca Júlia tinha uma espécie de afinidade espiritual, o que o levou a querer saber os motivos dessa atração buscando informações sobre a misteriosa morte da poetisa e principalmente o seu destino pós-morte. Curiosidade e talvez um amor platônico de adolescente. Convidou seu amigo Flávio para ajudá-lo a desvendar esse mistério da “Musa Impassível”. Resolvido parcialmente o enigma, que era trabalharem juntos no socorro aos suicidas, saíram em busca de conhecimento junto à alguns amigos médicos, que lhes deram as primeiras noções e advertências sobre os problemas que enfrentariam. Um desses médicos, o psiquiatra Wilson Ferreira de Melo, meses mais tarde emprestaria uma sala do seu consultório para que os jovens iniciassem suas atividades. A intenção dos jovens era conversar com pessoas com ideias suicidas e tentar aliviar suas dores íntimas.  À eles aderiram mais 16 pessoas para realizar uma escala de plantões de atendimento, que incialmente seria feito em caráter provisório nas dependências de uma entidade religiosa que ficava na rua Maria Paula, quase esquina com a rua Genebra.  O primeiro plantão foi realizado numa quarta-feira, entre às 16 e 22 horas, por uma única voluntária: a enfermeira Misayo Ishioka. Era 28 de março de 1962. Misayo era filha de imigrantes e tinha vindo com os pais do Japão pouco antes do início da guerra. Ela era natural da cidade de Hiroxima.

Lendo tudo isso fiquei admirado e muito inquieto. Aceitei o convite da Dona Marlene para conhecer um posto e o evento do CVV. Pesquisei também a propaganda do CVV, sempre muito divulgada nos meios de comunicação.  Um dos anúncios que mais me chamou a atenção foi um que convidava vários tipos de pessoas e profissionais para atuar como voluntários. Este estava direcionado especialmente a pessoas como eu:

Você que é estudante, venha compreender uma porção de coisas que não se aprendem na escola”.

Me empolgou, porém questionei muito porque não temos um grupo de jovens como Samaritans Teen. Respondi prontamente para mim mesmo lembrando que já tínhamos criado a Estação Amizade.

A MENINA DE LONDRES, 13 ANOS.

No livro da história do CVV também tem a história de como foi iniciado o Samaritanos, em Londres.

Um reverendo iniciante da Igreja Anglicana, Chad Varah, nos anos 1940, recebeu um chamado para atender uma família que havia perdido uma filha. A menina de 13 anos havia cometido suicídio porque não conhecia os primeiros sinais da menstruação e pensou que havia contraído uma doença venérea. Com medo dos pais, a garota tirou a própria vida.

Chad ficou chocado com o caso e decidiu iniciar esse trabalho de apoio e escuta aos suicidas. Começou publicando um anúncio num pequeno jornal londrino oferecendo ajuda: “Quero conversar com pessoas séria sobre assuntos sérios”.  Diz Chad Varah que a primeira visita que recebeu foi de uma pessoa que atravessou o Canal da Mancha somente para conversar com ele.

Naquele caso da menina, e também ao logo do tempo, Chad Varah percebeu que três fatores foram decisivos para de consumar a tragédia: a falta de conhecimento; o preconceito envolvendo as questões sexuais; e finalmente o tabu em torno do suicídio.  Assuntos proibidos e tratados como barreiras provocam o agravamento dos problemas, impedindo a busca de soluções. A menina poderia ter sido salva se tivesse tido a liberdade de conversar com alguém mais próximo sobre as suas dificuldades.

Recentemente, por meio de um artigo publicado na imprensa, uma executiva que presidiu o Samaritanos revelou que na sua infância sofria abusos do padrasto e só não cometeu suicídio porque procurou ajuda no grupo onde hoje ela atua como voluntária. Na década de 1960, preocupado com as altas incidências de casos envolvendo tabus sexuais, Chad Varah criou as “Brendas”, grupo de atendentes especialistas dos Samaritanos, cuja função era ouvir e orientar pessoas com distúrbios sexuais e encaminhá-las para um tratamento médico e psicológico.

Fiquei intrigado com essa atividade das Brendas imaginando se elas e outros voluntários desse serviço de ajuda não correm nenhum tipo de risco por parte de clientes desequilibrados ou de pessoas que se aproximam desses grupos para cometer crimes. 


ALEX, 22 ANOS.


Recentemente vi na TV uma minissérie na qual um jovem psicopata, assassino frio, fazia parte de uma ONG do tipo CVV, na qual se escondia para aparentar ser uma pessoa confiável e de bem. “Típico psicopata, que vive armando ciladas para abocanhar suas presas”, disse um psiquiatra que atende no posto de saúde aqui no bairro. 

Procurei a Verônica para falarmos sobre isso. E não fiquei nada surpreso com o interesse dela. Me mostrou textos, reportagens e relatou alguns casos que conhecia. Ela sugeriu que procurássemos o psiquiatra que atendia no bairro, pois teríamos informações mais científicas e esclarecedoras.

O Dr. Igor nos atendeu rapidamente pensando que se tratava de uma emergência ou segredo, mas na verdade queríamos saber, depois de termos lido e conversado muitas coisas sobre as razões da psicopatia não ter cura. Nos observou com aquele olhar “clínico”, talvez desconfiando de que eu ou Verônica fôssemos psicopatas , procurando algumas informações útil para plano sinistros. Mas depois percebeu que era só curiosidade de jovens estudantes. 

Eu tinha lembrado do Alex, filho do seu Paulo, e queria checar se ele realmente tinha as características da psicopatia. O Dr. Igor não pode conversar com a gente naquele momento, porém permitiu que o procurássemos na Faculdade de Medicina, onde lecionava. Lá pôde, como mais calma, responder todas as nossas dúvidas. Ficamos impressionados com as explicações dele e muito mais com as experiências que havia tido com algumas personalidades doentias.  Ficou contente pelo meu interesse de repórter e escritor pelo assunto; e também pelo interesse da Verônica pela psiquiatria.

Os psicopatas ou sociopatas (não existem diferenças essenciais entre eles) são analfabetos emocionais. Não conseguiram desenvolver a parte afetiva da personalidade, por algum fato marcante ou limitação pessoal. Para compensar essa incapacidade de afeto, ficam avantajados na racionalidade e na capacidade de manipular e usar as pessoas. Se aproveitam das suas vítimas com muita habilidade, sobretudo aquelas que são sentimentais. São mentirosos e fingidos. Não se sentem culpados ou com remorso quando cometem erros ou prejudicam os outros. Não possuem senso moral e, não raro, matam suas vítimas, como se fossem obstáculos e objetos a serem removidos e descartados. Nos homens a psicopatia se manifesta como agressividade física e também sexual; nas mulheres, também há uma certa agressividade, mas é marcante a promiscuidade sexual e o uso dessa característica como forma de manipular o sexo oposto (muito comum na prostituição). 

               “Mas como eles ficam assim”? Questionei. 

O médico me explicou que todos nós temos pequenos traços de psicopatia e até praticamos pequenas patifarias, socialmente aceitas. Os psicopatas geralmente ultrapassam esses limites.

Todos somos constantemente desafiados por situações difíceis e de ameaça e que cada um tem uma forma de reagir diante delas.

               Uns poucos resolvem os problemas pela inteligência.

Alguns fracassam e se resignam, esperando uma oportunidade melhor para solucionar o problema.

Muitos fracassam e empreendem fugas de adaptação, disfarçando o incômodo com distúrbios no corpo, alienação psíquica ou ainda aliviando a tensão por meio químicos (drogas e remédios).

Outros ainda adotam a agressividade para atacar a situação, não raro cometendo suicídio.  

Já os psicopatas escolhem o caminho mais fácil: atacam a situação e os que estão no entorno daquele problema. As pessoas se tornam presas e eles os predadores.

São especialistas na elaboração de um jogo no qual mudam constantemente as regras para se beneficiarem e garantir uma vitória forçada. 

O Dr. Igor nos alertou que esse tipo de informação não deve ser utilizada como uma régua para medir e julgar as pessoas. É uma visão científica para entender o distúrbio e compreender o psicopata e não para julgá-lo.

Entretanto, na medida em que as explicações fluíam, me vinha na memória as imagens de muitos criminosos, figuras históricas, personagens de filmes, novelas e principalmente do Alex. A polícia até já desconfiava de que havia sido ele o autor de alguns casos de roubos e assassinatos misteriosos ocorridos há alguns anos no bairro e que ainda não haviam sido esclarecidos. 

O Alex foi uma criança literalmente abandonada, apesar da vida confortável que teve. Seu Paulo havia ficado viúvo e não teve filhos com a primeira mulher. Alguns anos depois se envolveu com uma pessoa bem mais jovem, com quem teve o Alex. Ela não se acostumou com essa relação e nem com a responsabilidade de cuidar da casa e do filho; simplesmente abandonou tudo. Ele foi criado por inúmeras empregadas, enquanto seu Paulo constantemente viajava a negócios. Dava muitos problemas na escola e na vizinhança, sempre protegido pelas tentativas de compensação ofertadas pelo pai. Tornou-se um jovem muito estranho, anti-social e até maldoso. E conseguiu causar muitos danos até que fosse descoberta essa sua personalidade doentia. 

               Na volta do encontro de voluntários conversei com a Dona Marlene. Fiquei surpreso por ter recebido o convite, simplesmente porque nunca havíamos nos falado, a não ser para trocar cumprimentos rápidos. 

Fiquei um pouco constrangido quando ela se aproximou para conversar. Fez algumas perguntas sobre como estava meus estudos e meus planos para o futuro. Também quis saber das minhas impressões sobre o encontro e das informações que recebi durante as atividades que participei. 

Respondi tudo que ela queria saber, falando praticamente as mesmas coisas que acabei de relatar sobre o CVV. Mas logo percebi que esse interesse dela era tudo pretexto para falar de outro assunto. 

Lembrei que, nos encontros casuais com a minha mãe, elas falavam rapidamente de alguns problemas pessoais, quase que em linguagem de código, sempre complementada por olhares que confirmavam que as duas estavam trocando segredos sobre problemas que enfrentavam e que deveriam ser parecidos.  

Nesses momentos ela percebia que eu não ficava alheio ao que estava acontecendo e me inquiria com os olhos. Já a filha dela, quando estavam juntas, parecia totalmente alienada, apenas aguardando o término dos encontros.

Dona Marlene queria saber como eu lidava com os meus problemas. E fez isso contando sobre como ela lidava com os problemas dela, sobretudo com relação à Gabriela. 

Estava muito preocupada com o isolamento da filha, que se mostrava cada vez mais fechada. Tinha medo que ficasse mentalmente desequilibrada e se matasse. Sentia falta de um pai que nunca pôde conhecer, um caso amoroso que Dona Marlene teve na empresa e que não podia vir à público. 

A Gabriela não foi somente o fruto de um relacionamento proibido, mas se tornou sobretudo uma vítima desse segredo. E foi por isso que deixou de comer regularmente e passou a chorar por qualquer motivo. Ficou deprimida e anoréxica. Era uma forma de querer se matar aos poucos, para chamar a atenção da mãe e de buscar o pai ausente. Pensava em punir a mãe com a recusa de alimentos e ao mesmo tempo provocar o aparecimento do pai, pedindo uma proteção da qual sentia muita falta. 

Dona Marlene tinha muito medo de perder a Gabriela pelo suicídio e por isso buscou ajuda no CVV.  Com o passar do tempo achou que poderia se tornar voluntária e foi informada durante um programa de seleção que já tinha condições para isso. Agora gostaria de ajudar também a filha de forma mais direta, aproximando-a de outros jovens.

Apesar da surpresa e do entusiasmo com essa nova experiência, tenho receio de que eu perca o interesse por tudo isso e volte à estaca zero, ao tempo da indiferença e da aversão aos compromissos.  Tenho meus altos e baixos e um ponto fraco que me parece uma sombra pesada que me acompanha nessas horas. É a incrível facilidade que tenho de ficar entediado.

Também sinto muita atração pela bebida. Ela me deixa mais vulnerável ao isolamento e à inclinação para coisas fúteis e negativas. Isso não acontece somente comigo. Percebo isso em muitas pessoas quando vou em festas e eventos públicos. Antes não ligava muito, mas depois percebi que o tédio me desvia de coisas importantes e de pessoas significativas. “É um muro que bloqueia e adia o amadurecimento”, me disse certa vez um psicólogo.

Minha mãe sempre me cutucou sobre esse meu calcanhar de Aquiles. Nunca gostei da sua insistência nisso, mas depois fui percebendo que era um instinto natural dela em me proteger contra minhas próprias fraquezas. Mãe é mãe.

Para me livrar do tédio não busco mais novidades fáceis e diversões fúteis. Até busco um pouco, mas prefiro procurar algo que tenha mais a ver com disciplina e rigor comigo mesmo. Quando percebo que vou ficar entediado - mal-estar entre o peito e o estômago - faço uma checagem em tudo o que possa estar errado ou pendente nas minhas coisas. Não sei se isso é bom ou sempre saudável, mas creio que é um meio de me controlar e melhorar. Isso diminui os meus medos e a minha insegurança.

Outra coisa que muito me acalma nessas horas é buscar algo diferente para ler. Busco e quase sempre encontro.

               Estava ainda muito intrigado com a aquela visão do Tarso e principalmente com aquela revelação sobre os mutantes morais, as “pessoas do futuro”. Na hora que ouvi o relato achei engraçado e logo pensei em todos nós caracterizados como personagens da série X-Man.

Mas a dúvida persistiu, mesmo com essa reação infantil e desrespeitosa com o talento especial do Tarso. Queria saber onde poderia procurar alguma coisa a respeito disso. Novamente encontrei a resposta, ou parte dela, no livro da história do CVV.

No capítulo que fala das origens deles li que essa transformação humana vem acontecendo de forma lenta e em meio a uma grande luta entre duas forças antagônicas que disputam o destino do planeta: de um lado os movimentos de degeneração (guerras, aniquilamento humano, destruição ambiental, sociedade de massas, consumismo, desvalorização da identidade individual); e do outro os movimentos de regeneração, embora em posição material inferior e desigual, muito ágil e inteligente nas ações celulares de multiplicação da resistência contra a destruição.

Estes últimos são os grupos que lutam pelo resgate da pessoa em todos os aspectos, com atividades humanitárias, de qualidade de vida, direitos sociais, pacifismo, ecologia, enfim, não conformismo e luta aberta pelas mudanças positivas.

Como todas as ONGs criadas no final do século XX e início do XXI, o CVV se encaixa perfeitamente nesse perfil. E as pessoas que se engajam nessas lutas seriam os precursores de pessoas e de atividades cada mais fores e transformadoras.

Sobre essas “pessoas do futuro”, a descrição feita por um desses pensadores sobre esse novo tempo sincroniza perfeitamente com a visão do Tarso.

Primeiro uma descrição de como seria o mundo do futuro, escrita em 1980:

“Este novo mundo será mais humano e humanitário. Explorará e desenvolverá as riquezas e capacidades da mente e do espírito humano. Produzirá indivíduos que serão mais integrados e plenos. Será um mundo que valorizará a pessoa individual, o maior de nossos recursos. Será um mundo mais natural, com um renovado amor e respeito pela natureza. Desenvolverá uma ciência mais complexa e humana, baseada em conceitos novos e menos rígidos. Sua tecnologia objetivará o engrandecimento das pessoas, ao invés da exploração delas e da natureza. Libertará a criatividade, à medida que os indivíduos sentirem o seu poder, suas capacidades, sua liberdade. Este é o novo mundo em direção ao qual estamos inevitavelmente nos movendo: uma nova realidade, uma nova ciência, um novo ser, em constante processo de transformação”.

               E depois que tipo de pessoas viverão nele:

               “São abertas à experiência, a novos modos de ser, a novas ideias e conceitos e a um recentemente descoberto mundo de sentimentos. Têm uma antipatia por qualquer instituição altamente estruturada, inflexível, burocrática. Acreditam que a instituição deve existir para as pessoas, e não o inverso”.

E quais as dificuldades que teriam para gerar as mudanças:

“Terão que lutar contra a opressão, as perseguições e a marginalização. Sofrerão o desdenho, o escárnio, a raiva, por que nunca serão bons conformistas e uma constante ameaça a pessoas raivosas e amedrontadas. Serão desajustadas em muitos aspectos. Sua infância será uma um tempo de provação e de sofrimento. Mas elas dispõem de um importante elemento que nutrirá sua força, que é a sintonia com o futuro, pois podem conviver comas fantásticas mudanças quem estão em perspectiva”

Fiquei satisfeito com o que li, embora muito mais intrigado. Fui correndo procurar o Gabriel e contar todas essas coisas e questionar onde poderia achar mais informações sobre esse assunto. Não deu outra. Ele sabia. 

Também fui consultar o meu tio e ele me deu informações ainda muito mais precisas, de onde tirei esses trechos.  E também fiquei muito tranquilo porque sei que nem o Tarso nem a Larissa jamais tinham ouvido falar de Carl Rogers, Edgard Morin ou da jornalista Marilyn Ferguson.

Algumas horas mais tarde, andando próximo ao Píer, encontrei a Carla. Não sei por que, mas ela me atrai de uma forma inexplicável. Não é pela beleza dela, mas pela forma como age e reage diante das coisas. Tem muito a ver comigo. Dessa vez ela não fugiu de mim. Ela estava meio sem graça, mas não tocou no assunto da semana passada.

Iniciamos uma conversa que pensei que iria durar somente alguns minutos e quando demos conta já tínhamos falado de muitas coisas, por horas.

Inicialmente conversamos sobre como tudo isso começou e muito sobre o Hugo. Ela queria entender agora porque me interessei tanto pela história e pela situação dele e por que hoje. Disse pra ela que, embora ainda preocupado, encaro o caso do Hugo com mais tranquilidade e compreensão.  Não tenho mais aquela pretensão de salvar as pessoas, como tive com o Hugo, e sim de compreender e ajudar elas a compreenderem mais a si mesmas. Não precisamos ser profissionais de saúde mental e comportamental para fazer isso. É apenas um gesto humano, simples. O Hugo ainda me preocupa, mas confio que ele pode aprender a cuidar de si mesmo e decidir o seu destino. Quero isso pra mim também.

Como é bom conversar de forma mais reservada sobre as coisas que sentimos, sobre as impressões que temos dos assuntos que normalmente não gostamos de nos abrir.

Rimos muito das coisas que assumidamente não temos talento; apontamos as qualidades que admiramos um do outro e ficamos perplexos com muitas particularidades que não sabíamos.

Falamos um tempão sobre os motivos pelos quais as pessoas se aproximam e se afastam uma das outras. Fomos lembrando de pessoas que conhecíamos e como elas se encaixavam como exemplos nessas situações.

Me senti à vontade para chorar em alguns momentos e ela também chorou quando falou da separação dos pais e de como se sentiu perdida e abandonada, mesmo sabendo que eles ficariam sempre por perto. Falei da falta que sentia do meu pai e de como achava estranho ele ter outra família na qual ainda não me sentia próximo e íntimo. Nos colocamos nos lugares dos nossos pais e refletimos no sofrimento deles diante dessas mudanças na vida deles e em nossas vidas.

Visitamos as mesas páginas de jovens suicidas e que fazem apologia do suicídio na internet. Conversamos sobre a atração que temos por esse assunto e os motivos que nos levaram a também a pensar em tirar nossas vidas. Afinal, de certa forma, nossas vidas foram banalizadas pelos nosso pais. Não foi intenção deles fazer com as coisas chegassem a esse ponto, mas foi assim que sentimos quando percebemos que estávamos meio que sozinho no mundo.

Lembramos de muitos filmes e livros que tinham tudo a ver com as nossas experiências. Descobrimos até que tínhamos, na casa um do outro, livros que emprestamos para amigos e que eles nunca devolveram porque haviam emprestado para outras pessoas e que, de uma forma ou de outra veio para em nossas mãos.

Demos algumas gargalhadas e xingamos em tom de brincadeira muitos dos nossos colegas, sobretudo os que pedem coisas emprestadas e não devolvem.

Não tivemos muito tempo de falar sobre os nossos planos para o futuro tal foi a intensidade de assuntos daquele momento. Mas falamos sobre o Comité e a Estação Amizade.

A Carla achou tudo muito interessante e até deu umas ideias para atrair mais pessoas e formar outros grupos espalhados pela cidade.

Estávamos muito felizes por termos dado um ao outro a oportunidade e nos conhecer e de dividir coisas tão importantes.  Tive a certeza de que teríamos muitas outras conversas e que certamente, em outros momentos, poderíamos falar mais sobre nossos sonhos e projetos.

Convidei a amiga para me acompanhar no curso para voluntários do CVV. Disse que não queria ir sozinho. Ela topou na hora.

 

 

EPÍLOGO

 

Quando finalmente consegui reencontrar o meu amigo e que a minha busca chega ao fim. Será?

 

 

Algumas semanas depois de ter feito, eu e a Carla, o treinamento de voluntários do CVV, fui novamente procurar o Hugo. A mãe dele me disse que ele havia embarcado para o exterior. Quis me contar alguma coisa, mas preferiu não se aprofundar muito e que talvez não fosse o momento certo. Disse apenas que ele foi passar uma temporada na casa de uns amigos da família que moravam em Paris. Eram conhecidos que também trabalhavam, como ela, no serviço diplomático. 


A mãe de Hugo não estava satisfeita e temia que algo grave pudesse acontecer com ele, como acontecera com o marido. Não me dei por vencido e insisti em tirar mais informações dela, mas numa outra ocasião.


Fui pra casa pensando quando e como voltaria a procurar a mãe do Hugo. Teria que ter um bom motivo para voltar e fazer outras perguntas sobre essa viagem. Tinha algo muito estranho no ar. Como era uma situação de dor familiar, não queria ser indiscreto e inconveniente.


Por que o pai Hugo cometera suicídio?


O que o Hugo foi, na verdade, fazer em Paris?


Quem poderia me dar essas respostas? 


Pouco antes de entrar em casa encontrei o Gaúchão, um senhor negro alto, calvo, morador antigo do nosso prédio. Vivia sozinho e era de pouca conversa. Me chamava a atenção porque sempre carregava um ou dois livros e me parecia ser professor ou jornalista aposentado.


Certa vez o Hugo foi me procurar em casa e demos de cara com ele. Nos cumprimentou e ele disse para o Hugo que o Heraldo estava bem e que tinha mandado um abraço para mãe dele. Heraldo era aquele tio do Hugo, militar, e que se envolvera com a guerrilha na época da ditadura.


O Gauchão acenou com a cabeça e não disse nada. Dessa vez estava sem nenhum livro nas mãos, mas vestia uma camiseta branca estampada com três grandes letras (ALN) e com a inscrição: “Marighella Vive”.

               

           Já deitado e incapaz de dormir, fiquei pensando naquela camiseta  estampada e me veio a ideia de fazer umas perguntas ao Gauchão. Fui até o apartamento dele e toquei a campainha.  Já era quase 1 hora da manhã, mas sabia que ele também não dormia cedo. Queria saber detalhes sobre a vida do Heraldo como guerrilheiro.


Para a minha surpresa, ele me recebeu muito bem e até inventei que estava fazendo uma pesquisa sobre o regime militar. Ele não acreditou muito, mas me convidou para tomar um café. Só exigiu que não fumasse, pois tinha medo de ter uma recaída desse vício. Concordei e relatei para ele tudo que estava acontecendo.


Foi então que ele me contou, em detalhes, um pouco da vida dele e também do tio do Hugo. Eram antigos companheiros de guerrilha. Ele ficou meio agitado ao saber da morte do Coronel, pai do Hugo, sobretudo quando disse que a morte havia sido por suicídio com arma de fogo. E comentou: “Coitada da Lucinda, agora vai pirar de vez”.


Quem era Lucinda?  Não perguntei e ele também não disse.  Porém, nas histórias que me contou do Capitão Heraldo, tio do Hugo, surgiu uma outra pessoa que eu também não conhecia. Era o Alexandre, um estudante de medicina que havia desaparecido durante o regime militar. Ele tinha sido o pivô da desestruturação da família do Hugo.


Perguntei quantos tios o Hugo tinha de verdade, mas ele desconversou, dando a entender apenas que tanto o Alexandre como a Lucinda eram apenas conhecidos dos pais do Hugo. Pelo que entendi eram estudantes na época do regime militar e que, por influência do tio, o Capitão Heraldo, se envolveram com grupos políticos de esquerda e ingressaram na clandestinidade no início dos anos 1970.


Havia mais um casal de jovens, amigos de Alexandre e Lucinda, que também apareceram na história. Todos estudavam na mesma universidade em São Paulo e se filiaram na mesma organização clandestina. Eram muito íntimos e praticamente viviam como irmãos. O Gauchão não revelou o nome dos dois. Quando o tio do Hugo foi detido e isolado num quartel no Sul, esses jovens também desapareceram. Insisti nos detalhes da história, porém o Gauchão, muito desconfiado, disse que apenas a Lucinda dava notícias. Perguntei sobre o Tio Heraldo e o Gauchão desconversou novamente. Insisti de novo. Ele respondeu que iria investigar e na outra semana me daria uma resposta, pois precisava saber de umas coisas importantes antes de falar. Percebi que a notícia da morte do pai Hugo tinha deixado ele muito preocupado. Teria que aguardar.


Aquela foi talvez a semana mais longa da minha vida. Precisava de informações, mas estava de mãos atadas. Pensei em procurar o Tio do Hugo, mas não sabia onde estava. Parece que só o Gauchão sabia. Minha ansiedade era tanta que pensei até em fazer uma viagem a Paris  para desvendar esse mistério. Se o Hugo havia ido para a França por imposição da família tinha acontecido outra coisa muito mais grave do que o suicídio do pai dele. Pura fantasia, a viagem. Tentei achá-lo pelo Facebook, mas não deu certo. Não usava a rede há meses.  Novamente o motivo da ausência e o paradeiro Hugo era um mistério para o seu melhor amigo. Amigo traído.


Tio Walter. Sim, ele poderia me dar um Norte. A namorada dele sabia de umas coisas sobre essa época também e, de repente,  saberiam de alguma coisa. Acertei na mosca. Meu tio realmente conhecia alguns personagens dessa história. Tinha sido membro da UNE-União Nacional do Estudantes e contou que o Alexandre e a Lucinda eram muito conhecidos na cidade e no meio estudantil. Meu tio era filho de estivadores, mas eles eram filhos de pessoas importantes, gente de grana e influência, sobretudo o Alexandre.


           Perguntei do outro casal que andava com eles e meu tio respondeu que conheceu-os mas não sabia muito bem quem eram. Sabia apenas que eram também gente da alta sociedade que havia se envolvido em política estudantil. Disse que teve uma época que eles e muitos outros desapareceram da cidade. Corria um boato de que haviam se tornado terroristas, assaltantes de bancos e que tinham sido executados num confronto com a polícia.  Alguns foram enterrados como indigentes num cemitério na zona noroeste da cidade, cemitério de gente pobre.


No meio da nossa conversa meu tio recebeu um telefonema da Scarlatt, a namorada, e aproveitou para tirar umas dúvidas sobre esse assunto. A Scarlatt era amiga da Lucinda. As duas tinham sido alunas da Faculdade de Letras da USP. Ela confirmou a história e disse que a Lucinda estava morando em Paris. Tinha ido para lá fazer um tratamento mental e nunca mais voltou. Não sabia do paradeiro do Alexandre. E ouvi muito bem quando disse pelo telefone, de forma irônica: “Deve estar enterrado na Areia Branca” e complementou:  “A Lucinda se safou porque tinha costas quentes com aquela família de milicos”.


Não tive tempo de perguntar se ela tinha algum contato com a Lucinda.


Será que o Hugo estava na casa dessa Lucinda em Paris?


Pedi para ele ligar de novo para a Scarlatt e perguntar. Ela retornou algum tempo depois a ligação e disse que não tinha contato, mas que poderia tentar algo com os primos do Alexandre, que ainda viviam na cidade. E desligou de vez.


Meu coração não iria aguentar essa espera cruel. Nem do Gauchão, nem da Scarlatt.  Quanto tempo eles iriam levar para descobrir onde estava a Lucinda?  Somente a mãe do Hugo poderia elucidar esse mistério. Tive que esperar uma semana. Não morri. Nesse intervalo consegui levantar umas informações importantes para entender melhor essa situação que ainda estava muito obscura. Descobri, por exemplo, que o Gauchão era um militante esquerdista muito procurado pela repressão. Esteve no Chile, Argentina e Uruguai. Fazia incursões no interior ajudando camponeses oprimidos por fazendeiros. Nesses casos ele executava os fazendeiros que haviam agido com violência para expulsar os agricultores de suas terras, que não eram terras deles e sim dos Estado. Não usava esse apelido, mas sua estatura e sotaque sempre produziam essa descrição dele fora da região onde tinha nascido.


A semana passou até que rápida. Meu tio e a Scarlatt, por curiosidade repentina, levantaram um monte de informações com pessoas conhecidas.   Mais tarde ficamos sabendo que o Alexandre e a Lucinda, bem como o casal de amigos deles, não foram mortos pela repressão. Foram presos e torturados na época, mas sobreviveram.  Eles estiveram exilados do Brasil, mas voltaram ao País no ano da Lei de Anistia. Com o fim da ditadura, eles se engajaram em um partido e conseguiram trabalho nas empresas estatais e nas embaixadas do Brasil no exterior.


Em 1999 novamente os quatro se envolveriam em mais uma perigosa trama política.


Por informação do casal de amigos que trabalham numa embaixada na Europa, eles souberam que militares brasileiros, antigos desafetos deles, estavam evolvidos em negociatas ilícitas com empresas estrangeiras que atuavam na venda e instalação de equipamentos bélicos e de energia no Brasil. Com medo de serem denunciados, esses militares, agora fazendo parte do alto escalão no governo, iniciaram uma perseguição oculta e criminosa ao Alexandre e Lucinda, bem como aos dois amigos na Europa.  Alexandre e o casal foram assassinados. Lucinda, a única sobrevivente,  foi internada  numa clínica para doente mentais, já que tinha graves problemas psicológicos, por efeitos das torturas que sofrera quando era estudante.


Quem seria o misterioso casal assassinado?

S

e chamavam Flávio e Helena. Namoravam desde os tempos escola, no Colégio São Luís, em São Paulo. Flávio era aluno da Faculdade de Ciências Sociais da USP e Helena cursava engenharia na Escola Politécnica, da mesma universidade. Conheceram Alexandre e Lucinda durante alguns eventos culturais e também nas temporadas de verão em São Vicente e Santos. 


Como os nomes vieram à tona?


Não eram pessoas desconhecidas entre os jovens da época, pelo contrário. Qualquer universitário daquele tempo saberia dizer quem foram os jovens presos, desaparecidos ou exilados durante o regime militar. Mas, nesse caso, a descoberta foi por acaso.


Impaciente com o retorno das informações do Gauchão e da Scarlatt, fui em vários lugares da cidade onde pudesse explorar melhor esse caso. Não encontrei nada de imediato. Porém, enquanto aguardava o início meu estágio como voluntário do CVV , vi que na parede da sala havia um quadro de vidro contendo uma reportagem de página inteira de jornal. Na verdade, era o past-up original de uma matéria sobre CVV, publicada pelo jornal de Santos.Terminado o horário de plantão no estágio, resolvi ir até a sede jornal, no centro da cidade, para ver se encontrava algo nos arquivos. Por curiosidade técnica, para comparar o past-up com o jornal impresso, procurei e encontrei a reportagem sobre o CVV. Nela estava estampada uma imagem em alto contraste mostrando um voluntário de costas ouvindo uma ligação telefônica. Ambas páginas, do quadro e do volume encadernado estavam amareladas. Do nada alguém passa do lado e faz esse comentário:


“Essa imagem foi feita por um grande fotógrafo e quem está nela é um amigo um amigo muito querido”


Sorriu com um ar de muitas lembranças boas e desapareceu entre as estantes que guardavam as velhas edições encadernadas do jornal. Achei muito estranho tudo aquilo, mas continuei a busca. Antes que sumisse, o senhor que havia identificado o fotógrafo e o amigo voluntário na reportagem fez uma observação que me pareceu nitidamente uma dica.


 “Essa foi uma das nossas melhores edições de domingo”.


Entendi que deveria me concentrar e procurar com mais cuidado.


Realmente a edição estava recheada de notícias curiosas. Uma delas relatava o caso de uma diplomata santista que havia sido encontrada morta juntamente com o namorado durante uma viagem à Bélgica. Os brasileiros estavam hospedados num hotel em Bruxelas e a polícia suspeitava que tivesse ocorrido um pacto de suicídio entre dois, já que não havia marcas de violência nos corpos. Na noite anterior um outro brasileiro tinha sido morto por asfixia num pequeno albergue da cidade. Era Alexandre. A polícia estava investigando se havia alguma ligação entre os dois casos.


E a Lucinda? Porque não tinha sido morta? Como se salvou?


Deixei o volume encadernado sobre a mesa e sai em busca daquele misterioso informante que me dera a dica das reportagens. Fui em praticamente todos os departamentos do jornal e ninguém conhecia aquela figura. Achavam estranho e até engraçado as minhas perguntas sobre ele e as descrições da sua fisionomia.


Voltei para a sala de arquivo para guardar o volume e, ao passar pela janela, vi quando o tal homem atravessou a rua Amador Bueno, entrou na Martim Afonso e foi seguindo em direção à rua São Francisco. Precisava descer e alcançá-lo antes que desaparecesse novamente. Tive sorte. Meia sorte.


Correndo pela calçada ainda pude avistar de longe quando ele entrava pela lateral de um grande prédio público, já na rua Itororó, próximo à subida do Monte Serrat. Era o Palácio da Polícia.  Corri ainda mais, mas não consegui me aproximar o suficiente. Sumiu.


Entrei no prédio também, mas dessa vez tomei mais cuidado ao fazer perguntas e ao fazer a descrição da pessoa que procurava. Alguém sugeriu que talvez ele estivesse na sala de prontuários, já que era funcionário antigo do jornal, como eu havia dito. Nem sabia se era, mas disse.


“Eles sempre vêm aqui fazer pesquisa de nomes”, disse o vigilante do prédio”, que pensou que eu era jornalista.


Respirei fundo e subi pelo elevador até a sala indicada.


O velho prédio, que já havia sido utilizado como presídio, me parecia assustador. No final do corredor vi uma sala com umas estantes de madeira contendo pastas bem antigas, de papelão pardo. Entrei e tudo estava sob o mais estranho e típico silêncio das salas de arquivo, com muito cheiro de mofo. Nas paredes haviam folhas de sulfite amareladas contendo as listas de ordens das pastas e a indicação das estantes. Não me ajudou em nada. Andei para lá e pra cá e, completamente perdido, já estava pensando em desistir quando novamente ouço a mesma voz, agora sem poder ver seu dono.  


“Se você olhar com atenção nas listas vai perceber que estão em ordem alfabética. Ignore. Vá até a letra “D” e encontre a caixa escrita DOPS. Não tem nada a ver com Dops mas lá tem os nomes que você está procurando.


Já com a caixa na mão fui até a mesa quando me deparei com o Senhor do jornal.


“A Scarlatt é minha amiga e me disse que talvez você me procuraria no jornal. Meu nome é Waldir R.  Vamos  ver juntos essas pastas. Também sou pesquisador. Conheço esse arquivo como a palma da minha mão”.


Ele mesmo abriu a caixa e foi direto aos prontuários policiais de Flávio e Helena. As pastas tinham carimbos vermelhos de “CONFIDENCIAL”.


Os documentos mostravam como eles foram monitorados pela polícia durante anos. 


“Estão mortos. A pasta do Alexandre não está mais aqui. Alguém levou. É provável que tenha sido ele mesmo”, rindo e lembrando que o guerrilheiro era o mais ousado do grupo e não gostava de deixar vestígios”.


Waldir R. sabia de mais coisas, porém ficou indeciso se me contava ou não. Abaixou cabeça colocando-a entre as duas mãos e ficou em silencio por alguns instantes.  Quando voltou à posição normal, já de olhos abertos, disse: “ Seja o que Deus quiser”.


E foi me contando tudo o que sabia desse caso. E me alertou. “Ainda tem muitas pessoas vivas envolvidas nisso e é gente grande. Pense bem no que você vai fazer com essas informações”.


Primeiramente eu quis saber quem eram. Segundo ele, o Flávio e a Helena foram assassinados por engano. Quem deveria ter morrido era somente o Alexandre e talvez a Lucinda. O pai da Helena era um alto oficial das forças armadas e soube desse envolvimento deles nesse caso por meio de amigos que tinha no serviço secreto brasileiro e também da Interpol. Foi alertado que a filha e o genro estavam correndo risco de vida e tentou de tudo para salvá-los. Porém, aconteceu algo inesperado. As pessoas que receberam a ordem de poupá-los confundiram os casais.


Helena e Flávio tinham tido um filho recentemente, um bebê de colo. No dia que foram mortos a criança não estava com eles e sim com a Lucinda, não se sabe porquê.  Lucinda ficou sozinha com a criança e, apavorada, pediu asilo político na embaixada do Uruguai em Bruxelas. Salvou a vida dela e da criança. Quando tudo terminou ela teve um surto e teve que ser internada num hospital psiquiátrico. E ficou meses sem recuperar a memória.


A criança, um menino, foi trazida de volta para o Brasil  e colocada sob guarda judicial, pois não sabiam de quem realmente era filho. O pai de Helena conseguiu a guarda da criança alegando que faria isso para ajudar Lucinda. Não quis que soubessem que o menino era seu neto, pois o caso no qual os pais estavam envolvidos não tinha sido levado à público e nem seria. Temendo uma retaliação, ele cuidou também para que Lucinda fosse mantida internada em Bruxelas e depois levou-a para morar em Paris, sob cuidados médicos. Para todos os efeitos o menino era filho dela e seria criado, não como neto, mas como filho adotivo. 


Hugo viveu seus dezoito anos com os seus avós maternos pensando que era filho adotivo deles. Talvez o suicídio do avô tenha sido causado por um sentimento de culpa, por ter falhado no salvamento da filha e do genro; ou então por não ter revelado a verdade a Hugo.

 

Eu e Waldir R. conversamos mais algum tempo sobre outras coisas, sobre as suas atividades de pesquisa histórica. Falei para da minha dificuldade de escolher uma profissão, mas que me sentia muito atraído pela reportagem e pela literatura. Ele achou normal a minha dúvida e disse que com o tempo as coisas iriam se definir naturalmente. 


“O importante é sempre fazer o que gostamos e bem feito”.


Isso me ajudou bastante, pois me deixou mais tranquilo.


               Precisava voltar para casa. Tinha muitas coisas pra fazer e minha mãe certamente estava impaciente com a minha demora. Todo o serviço que me cabia, dentro e fora de casa, estava atrasado. Estava com a cabeça cheia de dúvidas e novas curiosidades. Ao mesmo tempo pensava se tudo isso não era uma perda de tempo da minha parte e que deveria mesmo era cuidar da minha vidinha simples, me preocupando mais com o meu futuro e a com a tranquilidade da minha mãe. Meu pai já estava com a vida dele resolvida. Decidi mudar de rota.


Voltei pelo Centro-Zona Noroeste, de ônibus, e fui pensando em tudo o que o Waldir R. havia me contado.


Como poderia checar essas informações?


Será que o Hugo já sabia de tudo isso desde o seu primeiro desaparecimento?


Onde estavam sepultados os corpos de Alexandre, Flávio e Helena?


Essa sua viagem para Paris foi iniciativa dele ou da mãe?


O Gauchão e Scarlatt certamente poderiam esclarecer essas dúvidas. Quando cheguei no meu prédio fui direto ao apartamento dele. Toquei a campainha vária vezes. Fui pra para casa. Ao abrir a porta vi um envelope contendo uma carta, na verdade um bilhete. Era do Gauchão


“Não me procure mais porque não vai me achar. O Capitão não está mais no Brasil. Aguarde notícias. As coisas podem mudar”.


Fiquei confuso e muito intrigado. Fui fazer minhas coisas, para espairecer. Varri a casa, lavei a louça e as minhas roupas. Aguei as plantas. Tirei o lixo. Verifiquei a correspondência e as contas. Arrumei o meu quarto, que milagrosamente não estava muito bagunçado.  O silêncio nunca havia me incomodado tanto. Minha mãe logo chegaria em casa. Televisão nem pensar.


Tomei banho. Comi alguma coisa. Sentei na minha cama e fiz o balanço do dia e da semana.

 

Hoje é sexta-feira, dia 15.


O tempo passou muito rápido. O semestre já se foi. Já estamos em dezembro. As aulas já acabaram e todos já estão de férias. O clima oscila entre o inverno e o verão. Parece que não tivemos primavera, a não ser nas mudanças pelas quais passamos, eu, Carla e todos os amigos.


Essa é uma época muito interessante. As pessoas ficam cheias de esperanças para um ano novo, mas estamos numa grave crise econômica depois que houve troca de governo. Dezenas de carros circulam pela cidade vendendo ovos. Cada um deles tem uma música diferente para chamar a atenção da freguesia. Os bares e padaria estão vazios. O velho e sofisticado Restaurante Boa Vista, especializado em frutos do mar, anunciou que vai fechar as portas. O casal que vende churrasquinho em frente ao bar perto de casa estava triste e desanimado quando passei por lá ontem,  mais ou menos umas nove horas da noite. 


Olhei para o lado e vi novamente o bilhete do Gauchão. Liguei o PC e fui direto ao Face.  Vários avisos de mensagens e algumas solicitações de amizade. Entre as mensagens estava uma do Hugo. Surpreso e muito curioso, li rapidamente as saudações e justificativas, indo direto ao ponto:

                

“Estou em Paris na casa da Tia Lucinda e do Tio Heraldo. No começo tive muito medo e estranhei tudo. Achei que ia me dar muito mal por aqui. Mas estava errado. Tudo é muito lindo e diferente.


Estou estudando numa escola de Artes e tenho que visitar semanalmente muitas bibliotecas e museus para fazer pesquisas e observações. Poderia fazer pela internet, mas prefiro fazer tudo pessoalmente.


Lembrei muito de você e como você iria gostar de tudo isso. Não estou te falando isso pra zoar. Pensei muito nisso porque  gostaria que você viesse para cá o mais rápido possível.


Falei com os meus tios e com a minha mãe e eles concordaram com essa ideia, sobretudo o Tio Heraldo, que quer muito te conhecer. Ele me disse que vocês têm um amigo em comum e que este amigo estava muito preocupado com o seu futuro.


Minha mãe já providenciou tudo o que você precisa, a papelada no consulado e a passagem, para a sua vinda. Não se preocupe com nada. Ela vai reservar umas roupas de inverno também, assim que souber a sua numeração. Aqui tá muito frio, cara!!! 


Se você topar, me confirme ainda essa semana. Se vier, vamos ficar no mínimo um ano por aqui. Fale com a sua mãe e explique que vai ser uma boa pra você”.


Nem preciso dizer que passei a noite em claro, com um tremendo frio na barriga e um imenso sopro no coração. Cabeça a mil. Contei tudo para a Larissa e para Carla. A Carla teve uma reação natural e até me deu sugestões de como aproveitar melhor a viagem. A Larissa teve uma reação diferente. Não sabia o que dizer. Por isso tomei a liberdade de copiar e colar para ela a mensagem do Hugo. Achei que ele ia se sentir melhor, mas tranquila. Acertei. Prometi manter as duas bem informadas.


Minha mãe levantou duas vezes para saber o que estava acontecendo. Na segunda vez não resisti e contei tudo pra ela. Ela chorou muito, mas foi de alegria. Disse que Deus tinha ouvido as preces dela. Disse também que ia ficar muito bem e tranquila. Choramos juntos. Apesar das muitas dificuldades, iriamos terminar 2016 com muita alegria e esperança. Passamos o Natal juntos, numa paz sem tamanho. Fui assistir uma missa com ela.

 

 

No dia 28 de dezembro já estava em Paris. Viagem longa e cheia de novidades e pensamentos. Pensei até num acidente aéreo e no avião caindo aos pedaços no oceano Atlântico. Estava tentando me boicotar achando que não merecia tudo isso.


Cheguei bem. O Hugo e o Tio Heraldo estavam me esperando e fomos direto para casa deles, um apartamento grande e muito antigo, como o bairro, chamado  Quartier Latin, bem perto do rio Sena e da Universidade de Sorbone.


 Foi uma semana muito tranquila, apesar dos meus receios e timidez. Todos estavam muito dispostos a me deixar a vontade.


A Tia Lucinda é uma pessoa muito sensível e acolhedora. É artista plástica e trabalha em galerias e lojas criando instalações e vitrines. Faz também cenários de peças de teatro.


  O Tio Heraldo é um leitor voraz e escreve sem parar. Manda informações para pessoas no Brasil e de vários lugares do mundo. É especialista em armas e equipamentos militares. Conversamos bastante e me contou que o Gauchão falou muito bem de mim; disse que eu seria um ótimo jornalista e que precisava me preparar para isso; que poderia ficar na casa deles o tempo que fosse necessário. Argumentou que não tinham filhos e que a nossa presença, minha e do Hugo, seria sempre uma alegria. Acha que provavelmente eu nem volte ao o Brasil. Mas deixaria que eu escolhesse com calma e que ficasse tranquilo para resolver as coisas.


O Hugo já sabe de tudo o que aconteceu com os verdadeiros pais dele. Ficou muito triste ao falar dos avós e do sofrimento deles. Não conhece os parentes do pai, ainda. Tem certeza que essa informação sobre o pai vai mudar muito a sua vida, numa nova etapa e com um novo significado.  


Num fim-de-semana fomos surpreendidos com uma viagem a Portugal. Fomos um trecho de trem e depois seguimos de carro até Lisboa.  Foi um outro choque para mim. Os pais de Hugo estavam enterrados lá.  Visitamos a sepultura e depois fomos visitar uns amigos brasileiros dos tios do Hugo, que moravam na cidade há muitos anos. Um deles me perguntou do Waldir R. Fiquei surpreso. Não pude dizer muita coisa e falei de como desvendei parte dessa história toda.  E o que me questionou disse “O misterioso Waldir R.”  E todos riram muito. 


De volta Paris estamos prospectando juntos. Eu e Hugo. Trabalho, estudos, novas amizades. Perguntei a ele sobre os refugiados que estão entrando em massa na Europa. Ele disse que os conservadores temem esse movimento achando que os estrangeiros vão mudar o estilo de vida dos europeus propagando novos costumes e crenças. É um temor antigo, muito antigo, chamado xenofobia, já cultivado pelos antigos gregos e romanos.


Mas os jovens liberais pensam de forma diferente e defendem que os refugiados sejam tratados como humanidade e não como pessoas de nacionalidades diferentes. “Einstein era um e refugiado e foi o que foi por teve uma chance de viver em uma nova cultura” argumentam.


Muitos desses jovens organizam campanhas para ajudar os refugiados com alimentos, roupas, remédios e sobretudo calor humano. Vão em grupos nos acampamentos para conhecer e conversar com eles sobre suas experiências e suas expectativas. São histórias muito tristes, mas que revelam as nossas fragilidades sociais diante das guerras e catástrofes. Aquela imagem famoso do menino sírio, bem vestido e afogado numa praia do Mediterrâneo, parece que ainda faz muito efeitos nas pessoas e isso motiva bastante a solidariedade.


Combinamos de fazer uma viagem até um acampamento desses, localizado no leste europeu.

 

 

Estamos numa tarde de sábado, já no final de janeiro. O Hugo lembrou que tem um compromisso.


Saímos juntos e fomos em direção a uma pequena praça. Vento frio. Tudo cinza.  Estamos chegando e já avistamos de longe uns jovens conversando em pequenos grupos. Não são muitos. O Hugo já conhece alguns deles. Tem uma garota de Portugal e um rapaz espanhol entre eles, o que deve facilitar muito o meu entrosamento.


Mas preciso aprender francês, de forma intensiva. Essa é uma boa oportunidade. É uma roda de conversa sobre problemas dos jovens.


O Hugo soube pela Larissa que estávamos nos reunindo no Brasil e achou a ideia muito interessante. Ela pediu que ele procurasse um grupo.  Na verdade, ela mesma procurou e achou, indicando ao Hugo que procurasse essas pessoas. Inclusive foi a Larissa quem identificou a garota portuguesa e o cara da Espanha no grupo.  Ela acaba de mandar uma mensagem para nós e para todo o grupo me apresentando e desejando boa reunião para todos.


Antes da nossa chegada na praça algumas pessoas já começam a nos saudar com as mãos. O  Hugo abriu o casaco e mostrou sob a  blusa de lã a camiseta que estava usando. Está estampado, em amarelo e cinza, ESTAÇÃO AMIZADE. Logo abaixo, tem o desenho  de um coração,  a assinatura da Larissa e de todos os amigos do Comitê.


“Só você não assinou”, disse o Hugo, me cobrando e com a caneta na mão.




O AUTOR

 

 DALMO DUQUE DOS SANTOS tem 63 anos e se tornou voluntário do CVV-Centro da Valorização da Vida quando tinha 18 anos.  É também autor do Livro “Como Vai Você – CVV, 50 anos ouvindo Pessoas”, que conta a história da primeira entidade de prevenção do suicídio no Brasil e na América Latina. É docente de ensino superior e da rede pública de ensino. Fez mestrado em Comunicação e Cultura na Universidade Paulista-UNIP; bacharelado e licenciatura em História na PUC de São Paulo. É licenciado em Pedagogia pela Faculdade Filosofia, Ciências e Letras de Presidentes Venceslau-SP. Atualmente se dedica a realização palestras e treinamento gratuito em escolas e instituições, sobre ajuda emocional e prevenção do suicídio.

 

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SANTOS, Dalmo Duque, 1961.

 Estação Amizade, dez jovens lutando contra o suicídio. Dalmo Duque dos Santos. 2016.

Prevenção do suicídio. Literatura infanto-juvenil. Novela infanto-juvenil brasileira.

 

      ESTAÇÃO AMIZADE Dez jovens lutando contra o suicídio   DALMO DUQUE                  “Mesmo que não existis...